segunda-feira, 26 de setembro de 2011

HISTORIAS DAS MINHAS RAIZES


NOTA DO AUTOR

Este livro nasceu duma retrospectiva aprofundada ao meu passado que me levou a pensar deixar algo escrito aos meus descendentes sobre uma vida de luta sem facilidades.

Nasci em 1940, época em que quase tudo era dificuldades.

Desde muito novo comecei a projectar o meu futuro o que não foi muito difícil, pois as opções de escolha eram poucas.

Entendi então deixar nesta simples peça de artesanato, uma mensagem de gratidão à minha esposa, aos meus filhos e netos, noras e meu saudoso genro Marco Melo por me haverem permitido contornar algumas dificuldades que se me depararam naquilo que foi o meu percurso de vida. Tive a sorte de ter uma família da qual me orgulho, a quem dedico com muito amor, esta minha confissão.

No sentido de dar alguma credibilidade a este meu arrazoado, lembrei-me de consultar o Manuel Goulart Serpa, meu amigo de infância, colega da escola e ainda meu parente, que em meu entender é uma enciclopédia nestas matérias. O Manuel Serpa, pelo telefone respondeu-me: Com todo o gosto. De seguida e depois de ler estas histórias, quase me exigiu a sua apresentação pública em São Caetano. Hesitei mas, cedi.

Pelo seu interesse, pela sua colaboração na conferência deste, feitura do prefácio, apresentação, etc., quero aqui agradecer ao Serpa, com um grande abraço de amizade e reconhecimento.

São Caetano – Ilha do Pico, 12 de Agosto de 2011

                         

                                   PREFÁCIO


Esta iniciativa, repassada de história e emoção, é digna dos maiores encómios.
Quem nasceu, viveu ou tem ligações a esta pequena parcela fascinante – a nossa freguesia – encontrará neste livro um repositório fantástico que nos convida e alerta para sítios repletos de “estórias”, para cenários antigos de festa marcantes na comunidade, para artes singulares de sobrevivência, para a odisseia baleeira e para figuras típicas deste lugar que nunca poderão passar ao esquecimento.
Com o Antonino (António Francisco da Silva) brincámos nas pias com barquinhos de madeira, frequentámos a mesma escola velhinha que nos deu asas para voarmos para destinos tão diferentes, comungámos parte da nossa vida. Incentivei-o a levar em frente estes escritos porque são muito importantes, não apenas para os seus filhos, netos ou bisnetos.
É uma obra fundamental para todos os que entendem que não há presente sem passado. É pelos alicerces que os pedreiros constroem as casas.
Esta obra revive, com paixão e muito amor, as bases da nossa identidade sócio-cultural.
Hoje, a museologia arrasta multidões por esse mundo fora.
O António, nesta fase de uma vida bem realizada, volta ao berço, à vereda, à atafona, ao moinho, à festa com roupa nova, a um porto aconchegado, à adega típica, à canada do frade….
Quem nasceu neste lugar agradece-lhe o gesto e a paixão. São Caetano fica mais rico com este livro.
Como filho desta terra expresso-lhe a minha gratidão e deixo-lhe um apertado abraço.

Obrigado

Manuel Goulart Serpa



  ANTÓNIO FRANCISCO DA SILVA

Anos 40/50 do Século XX

   São Caetano – Ilha do Pico - Açores


A Ilha do Pico é a segunda maior ilha do Arquipélago dos Açores e dista da Ilha do Faial 5 milhas e da Ilha de São Jorge 10 milhas. Tem uma superfície de 447 km²; e conta com uma população residente de cerca de 15000 habitantes. Mede 42 km de comprimento e 20 km de largura. A Ilha deve o seu nome à majestosa montanha vulcânica, a Montanha do Pico. É a mais alta montanha de Portugal e a terceira maior que emerge do Atlântico, atingindo 2.351 metros de altitude.
Administrativamente, a ilha é constituída por três concelhos: concelho das Lajes do Pico, Madalena, ambos com seis freguesias e São Roque do Pico com cinco freguesias.
Dispõe na freguesia das Bandeiras, de um moderno Aeroporto Regional com ligações aéreas directas com Lisboa, e ainda, voos regionais entre outras ilhas do Arquipélago. Tem várias ligações marítimas diárias com a cidade da Horta e, normalmente, vilas das Velas e Calheta de S. Jorge. Durante os meses de Verão, as ligações estendem-se, também à Ilha Terceira.
A ilha emergiu de uma fractura tectónica, a mesma que deu origem à Ilha do Faial, denominada Fractura Faial-Pico, que se desenvolve ao longo de 350 km, desde a Crista Médio Atlântica até uma área a Sul da Fossa do Hirondelle.
No início, a designação Henriquina da ilha era Ilha de São Dinis. Na cartografia do século XIV, a ilha foi chamada de "Ilha dos Pombos". O seu povoamento foi iniciado em 1460, na fajã das Lajes, mas tornou-se definitivo em 1483, quando Joss van Hurtere mandou fundar São Mateus. Em 29 de Dezembro de 1482, a ilha é integrada na Capitania do Faial pela Infanta D. Beatriz, em virtude de Álvaro de Orlenas não ter tomado posse da ilha.
Em 1501, Lajes do Pico é elevada a Vila e sede de concelho pelo Rei D. Manuel I. Em 1542 é a vez de São Roque do Pico e em 1712, a de Madalena.

Cultura e Património  

Em Julho de 2004, o comité da UNESCO considerou a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico como Património da Humanidade. A área engloba os lajidos das freguesias da Criação Velha e de Santa Luzia. A cultura da vinha domina a parte ocidental da ilha, sendo o famoso "Verdelho do Pico" cultivado em pequenas quadrículas de terreno onde crescem as vinhas, separadas por muros de basalto negro feitos de pedra solta, chamados localmente de "currais".
Presentemente, já existe um Parque Natural na Ilha do Pico, englobando a área da Montanha do Pico, o Planalto Central e a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico
Outro património inclui: a Gruta das Torres, na Criação Velha; a Furna de Frei Matias na Madalena; Museu do Vinho, instalado no antigo Convento das Carmelitas; o Museu da Indústria Baleeira, em São Roque do Pico; o Museu dos Baleeiros, nas Lajes do Pico, três pólos que constituem o Museu Regional do Pico.

Principais Festas

Festa e Procissão do Senhor Bom Jesus Milagroso na Freguesia de São Mateus, Semana dos Baleeiros na Vila Baleeira das Lajes do Pico, Cais Agosto S. Roque, Festas de Santa Maria Madalena, Semana das Vindimas, Madalena, Festas do Espírito Santo por toda a Ilha, além das tradicionais em todas as freguesias.
ECONOMIA
Na Ilha do Pico, geralmente, as pessoas dedicam-se à agricultura, à pesca e à pecuária. A vinha, outrora uma das grandes riquezas da ilha que produzia o afamado verdelho do Pico, exportado para a Inglaterra e para a América do Norte e que chegou a ser servido à mesa do próprio czar do Império Russo, foi gradualmente afectada pela praga do oídio na segunda metade do século XIX.
Actualmente, a produção é reduzida, mas, de superior qualidade, nomeadamente depois da plantação de novas castas. Presentemente há espécies de vinho produzido no Pico cuja qualidade vem sendo premiada em feiras e mercados nacionais e internacionais.
Além da pecuária, as principais fontes de rendimento no campo da agricultura são os produtos hortícolas.

A pesca é outra actividade importante, tendo num passado recente existido três fábricas de conservas de atum a laborar, e, actualmente, apenas uma na Vila da Madalena.
As indústrias da Ilha estão, na sua quase totalidade, ligadas ao ramo alimentar: lacticínios, destilarias e moagens. No artesanato destaca-se a escultura em basalto e em osso de baleia, bem como rendas e bordados.
A gastronomia na ilha é muito rica. O mar generoso colabora com uma ampla variedade de matéria-prima para a confecção dos deliciosos pratos.
De destacar os crustáceos como a lagosta, cavaco e o caranguejo, os moluscos encabeçados pela lapa, a crava, a lula e polvo, base de pratos únicos como o “polvo guisado em vinho de cheiro”.
Peixes de todos os tamanhos, formas, cores, texturas e sabores: abrótea, chicharro, congro, goraz, cherne, garoupa, inxaréu, bicuda, pargo, moreia, írio, salema, espadarte, cozidos, fritos ou grelhados podem oferecer-se um sabor típico da Ilha. o “caldo de peixe” ou uma espectacular “caldeirada”.
As pastagens picoenses não são menos pródigas, com as suas carnes de bovino e suíno. Estas, muito nossas, mostram-se imbatíveis numa “molha de carne de vaca ou uns “torresmos”, de carne de porco.
A carne de bovino não é menos apetecível num bom bife. A de suíno faz as singulares “linguiças” e com o sangue e outros miúdos, fazem-se as saborosas “morcelas”.
Temos ainda os acompanhamentos, sólidos e líquidos, os queijos do Pico, feitos a partir do leite de vaca. Estes elementos vão muito bem com um bom vinho e um pedaço de bolo de milho, ou até com pão de massa sovada.  
O vinho do Pico é sinónimo de orgulho. A cultura da vinha está associada aos primeiros tempos do povoamento, nos finais do século XV. O vinho verdelho, a partir da casta do mesmo nome, ganhou reputação mundial ao longo dos séculos.
A partir do século XIX são introduzidas novas castas que dão origem a vinhos de mesa brancos e tintos, mas, a maior mudança, deu-se nos finais do século XX.
O modo de cultivo, contra a aspereza dos terrenos vulcânicos quase sem terra vegetal, em currais, que são áreas muradas de pedra negra, de muito pequena dimensão, marca igualmente a cultura da Ilha do Pico.
A prova da importância local e mundial é o facto da UNESCO, em Julho de 2004, ter considerado a Paisagem Protegida de Interesse Regional da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, criada em 1996, como Património Mundial da Humanidade.
Currais, maroiços, que são diversos amontoados de pedra em forma de pirâmide, vinhas e adegas com os seus equipamentos, são elementos emblemáticos da Ilha.
Por fim, uma prova dos doces e digestivos. Um bom prato de arroz doce, massa sovada ou rosquilhas. Para o final, um bagaço do Pico, uma aguardente de figo ou um dos vários licores a partir de amora, nêspera ou angelica.
Um pouco de mim

Estamos no ano 2011 da era de Cristo. O mundo evolui a uma velocidade vertiginosa.

Na minha geração houve uma viragem histórica na evolução da Humanidade.

Na última metade do século XX, deram-se os maiores progressos científicos e tecnológicos. 

Foi a imprensa, a rádio, a televisão, os satélites, a ida à Lua, os computadores, a Internet, o GPS, os telemóveis, o Facebook, etc. 

Como tal, tenho grandes saudades e recordações dos tempos da minha infância e adolescência, passados em São Caetano, designadamente do ambiente familiar.

Recordo-me perfeitamente do primeiro receptor de rádio na freguesia, na loja do Sr. Correia, no qual pouco mais se ouviam que alguns assobios.

Atendendo a que, do passado, se deve registar um rol de experiências e recordações, por conseguinte, a pura enciclopédia da vida, de factos que as gerações logo a seguir à minha quase desconhecem, o que no meu entender será uma pena, se se perderem certas e agradáveis memórias desses tempos, pensei então dar neste escrito, o meu simples e humilde contributo para que tal não aconteça, no todo ou pelo menos em parte, muito especialmente por parte dos meus filhos, netos e bisnetos.

Usarei uma linguagem simples, a do povo - aquela que eu melhor conheço - para melhor compreensão de quantos tenham pachorra de ler estas minhas simples histórias.

Abordarei, frequentemente, casos de pobreza. Era o normal naqueles tempos e foi nessa época que nasci e cresci.

Nunca tive o complexo do pobre e do rico, sempre percebi que o mundo é composto de tudo e todos têm direito à vida, mas, é da história dos pobres que fazem parte as minhas melhores recordações.

Entretanto, penso que a vida e aquilo que pretendemos ser, se constrói no dia-a-dia. Diz o ditado: “Cada um tem aquilo que merece”.

Em meu entender, a pior pobreza que pode existir, é a da criatura que tem vergonha e ou esconde as suas origens.

Eu, António, sou o terceiro dos cinco filhos do casal António Francisco Manuel e Isabel Marques da Silva, ele agricultor, ela doméstica, dados e criados na Freguesia de São Caetano, também conhecida por “Prainha do Galeão” do Concelho da Madalena, na linda Ilha do Pico do Arquipélago dos Açores. Aqui nasci no dia 13 de Dezembro de 1940 às 15,30 horas.
Prainha do Galeão, era o nome pelo qual a freguesia também era conhecida. Segundo reza a história, num estaleiro naval aqui existente ao tempo, no reinado de el-rei D. João III, fora construído um Galeão por ordem do Capitão Donatário Garcia Gonçalves, para pagamento de dívidas ao Reino.

A paróquia de São Caetano, no princípio, foi curato, pertencendo à freguesia de São Mateus.

No ano de 1862, Francisco Pires Flores, mandou erguer uma ermida próximo do porto, onde hoje se encontra um pequeno nicho dedicado a São Caetano.

Em 1878, Manuel Silveira de Melo, mandou construir a actual igreja de São Caetano.

Por falta de madeiras e dinheiro, as obras da Igreja tiveram que ser interrompidas por longos anos.

Reza a história que, mais tarde, no lugar da Pontinha, encalhou uma nau carregada de trigo, vinda de Vicenza – Itália – terra natal de São Caetano.

O povo considerou um milagre, pois foi com as madeiras dessa nau que a Igreja finalmente pôde ser concluída.

Constata-se que a trave que suporta o coro da actual igreja foi obtida nesse naufrágio.

O lugar foi elevado à categoria de freguesia no dia 2 de Outubro de 1880. Fazem parte da mesma, os lugares do Caminho de Cima e Terra do Pão.

A Freguesia de São Caetano hoje com 550 habitantes, tinha quando eu era criança, cerca de 1200.
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Aproveito para prestar aqui a minha homenagem ao PadreManuel Pereira Garcia, meu colega de carteira na escola primária, amigo de infância, da minha idade, e, último pároco efectivo em exclusivo, nesta freguesia de São Caetano.
São Caetano tem a maior e melhor baía da ilha do Pico. Era aqui que, as traineiras vinham apanhar o isco (chicharrinhos) para a pesca do atum, especialmente quando o não encontravam noutras paragens.
Em noites calmas de verão, por vezes eram tantas as luzes, que nos pareciam uma Vila.

       
As Fontes

As fontes são um sítio em São Caetano, cujo nome provém da existência de três fontes de água natural fresca e cristalina, que ali chega filtrada através do terreno. São três e ficam à beira do caminho do mato, ou seja: o caminho de acesso às terras altas e pastagens. Ali, nas proximidades, havia um descansadeiro onde as pessoas arreavam as suas cargas e as canecas com o leite que traziam das suas vacas, para descansar um pouco, fazendo e fumando o seu cigarro, sentados numa bancada de pedra ao lado, depois de terem ido matar a sede com a fresquinha água das fontes, fazendo cada qual, uma vasilha para o efeito, normalmente duma folha de roca.


Terra das minhas origens

Meus Pais, pessoas humildes, em tempos de pouca fartura, haviam iniciado a sua vida a dois, a partir do nada, após casamento no ano de 1933.

O padrinho do casamento do meu pai, o Tio António Medeiros, irmão da minha Avó Paterna, oferecera-lhe um queijo fresco de leite de cabra e dissera-lhe que podia ficar também com o respectivo pratinho.


Ainda antes de casar, haviam feito alguns melhoramentos na pobre casa da Rita do Ferreiro como eles lhe chamavam, ali na Canada do Frade para onde foram habitar, que se encontrava tão-somente com as paredes no ar, com o tecto caído, sem porta nem janela, etc.
            
A casa onde nasci

Canada do Frade – São Caetano

Cerca de dois anos depois, compraram na mesma rua esta, também carecendo muito de obras de restauração, mas, desta vez já era sua.

Meu Pai principiou a sua vida trabalhando de sol a sol, dia a dia, para este e para aquele, pegando em cargas muito acima das suas possibilidades, puxando pela enxada até o corpo aguentar; caso contrário ninguém lhe daria um dia de trabalho. Em todos os tempos, houve pessoas com mais ou menos escrúpulos, e, nessa época já não faltavam alguns que se aproveitavam bem do suor dos menos afortunados. Isto, no tempo em que o salário diário de um trabalhador agrícola, era de vinte centavos, (uma serrilha) (0,1 dum actual cêntimo) que para melhor compreensão, comprava 4 (quatro) pães de trigo de 350 gramas, contavam eles. Nos primeiros tempos, como contava a minha Mãe, além do seu trabalho doméstico em casa, preparava a comida que ia levar ao meu pai às terras, e por lá ficava normalmente até perto da hora do jantar, a ajudá-lo naquilo que podia.
Mais tarde, e à medida que os filhos foram chegando, o tempo foi-lhe faltando. 
Mesmo assim, e apesar de serem poucas as mudas de roupa que existiam, eram sempre lavadas ao fim da semana de trabalho, normalmente no fim do Sábado, para voltarem a ser vestidas na segunda-feira seguinte de manhã. Muitas vezes, designadamente durante o Inverno quando chovia abundantemente, eram lavadas e enxutas sobre uns galheiros, (lenha) ao lado do caldeirão de ferro fundido sobre uma grelha de três pés, também de ferro, ao calor do lume da lareira, enquanto coziam os inhames, as batatas, a sopa, etc. Parece que estou vendo e ouvindo a minha Mãe a lavar roupa na pia junto ao tanque - à cisterna - lavando e cantando:

                           Ó mãe que horas passavas
                           Na aurora da minha vida
                           Junto ao berço que me embalavas
                           Meigamente me beijavas
                           Nessa infância tão querida

                           Naquele tempo não conhecia
                           Esses pecados sacrílegos
                           Ao lembrar-me quando eu ia
                           A saltar com alegria
                           Aos ninhos dos pintassilgos

                           Via o mundo a sorrir
                           Nesse meu sonho de amores
                           Sorria lindo o provir 
                           E agora estou a sentir
                           Tanto martírio e dores…


Não me lembro de ter havido nenhuma segunda-feira que alguém da família não tenha saído de casa com roupa lavada e passada a ferro aquecido com as brasas da lareira.

Meu pai, uma pessoa exigente, da qual me lembro todos os dias, dizia ter comido do “pão que o Diabo amassou com o Cu”, o que não queria para os filhos, mesmo que muito lhe viesse a custar.

Assim aconteceu. Fez das tripas coração, dando de si o que podia e o que não podia, para que pudesse, como só pedia a Deus, adquirir terras onde cultivar o necessário para o sustento e fartura dos filhos. Na época, normalmente, era das terras que se comia.

Nos seus princípios, era aos Domingos, dias santos e de chuva, que aproveitava para rasgar as suas vinhas – rasgar vinhas consistia em desbravar terrenos incultos, abandonados, arrancar faias e demais lenhas – onde pudesse plantar as primeiras parreiras, e num futuro próximo começar a ter uvas para comer e fazer vinho para casa, e também vender, para a ajuda do orçamento familiar.
Principiou pela Canada dos Coxos, terreno que embora novamente inculto, ainda continua pertencendo à família.

Contava a minha saudosa mãe que, quando lhe ia levar a comida, não continha as lágrimas, ao encontrá-lo por vezes todo molhado, a trabalhar com uma saca de serapilheira já toda alagada por cima dos ombros, pois nem a chuva o fazia parar.

A vinha do Jacinto era a nossa preferida. Ali, comíamos os primeiros bagos de uva nos primeiros dias de Agosto.
Nesta vinha, havia também uma ameixieira que dava muitas e saborosas ameixas pretas, aveludadas, miúdas e várias figueiras de bico de mel.
Ficava relativamente perto de casa, à beira da estrada regional, e era um lugar muito vistoso, onde sempre sonhei construir uma adega, e onde hoje tenho uma vivenda na qual eu, minha esposa, filhos e netos adoramos passar uns dias, especialmente no verão.

Herdou meu pai metade desta por morte do meu avô paterno e comprou a outra metade ao irmão Sebastião, meu tio e padrinho.

Os Adágios Populares

Naquele tempo ouviam-se e respeitavam-se muito os provérbios ou adágios populares. Muitas pessoas, normalmente quando falavam acerca das mais variadas coisas, citavam um provérbio.

Era a cultura do povo. Meu Pai, era daqueles que, pensava e dizia-nos:

É preciso ter o barco sempre aproado à vaga de mar, caso contrário, corre-se o risco de meter água ou revirar.
Contava também uma história em versos, à qual eu achava muita graça 

                          Casa, quanta mores                                                                                                                                                 
                          Vinha, quanta podes
                           Lavrança...
                          Quanta a vista alcança.
                         

                          Lá vai a Rita
                          Mai-lo Joaquim
                          Com saia de chita
                          Calças de cotim.

                          Têm campos, herdades
                          Têm juntas de bois
                          Trabalham as terras
                          Sozinhos os dois. Etc.


No tempo, era nos poços de maré (água salobra do mar) que a maioria das pessoas se abastecia de água para lavar roupas, e até para cozinhar, durante o verão. Só aquele felizardo que tivesse uma boa cisterna, na força do Verão, evitava ir parar ao poço de maré.

A minha saudosa Mãe, graças ao marido que teve, nunca precisou de lá ir. Sempre teve toda a necessária na sua cisterna.
              
A cisterna de meus pais


Como atrás acabei de referir, cada qual teria que ter a sua cisterna para aparar e reservar a água das chuvas.

Meu pai construiu uma, cuja armação era em pedra; e era cada uma... que, sozinho lá ia rolando conforme podia. Era tão bem feita por isso nela nunca faltava água em pleno verão.

Com a água dela, matou também a sede, não só a muitos dos vizinhos, mas a muita gente da freguesia que por ali passava e enchia as suas bilhas de barro ou latas para levar para as terras das redondezas.

Era da terra e do mar que normalmente se vivia. Não havia super nem hipermercados.

Da mercearia vinha normalmente para casa duma família com saúde, o petróleo para a iluminação, cuja candeia ou candeeiro só se acendia quando já nada se via, o sabão azul, o cotim para as calças, a chita para os vestidos e aventais das mulheres, o sal para a cozinha e salga do porco e do peixe, especialmente as cavalas e chicharro, para o Inverno e pouco mais. O açúcar e o pão de trigo, só em casos de doença.

Falei de petróleo, mas esse já representava progresso. Sou do tempo em que a iluminação se fazia com o azeite do toucinho das baleias derretido e também do fígado dos tubarões (albafares) e mesmo assim não era para todos. Eram de facto tempos muito difíceis.


A Matança do Porco

Normalmente em Dezembro, Janeiro e Fevereiro, quase todas as famílias matavam o seu porco que fazia a fartura da casa e era a maior festa anual das famílias.

Um mês antes da matança, as pessoas iam às pastagens altas cortar as vassouras – a urze – que depois de bem secas, serviam para chamuscar o porco, isto é: queimar-lhe o cabelo (os pelos) para posterior limpeza da pele.

Três dias antes do dia da matança, arrancavam-se as cebolas de rama, limpavam-se, lavavam-se e punham-se a secar, geralmente sobre as vassouras que já estavam na loja à abrigada, pois no dia da matança podia amanhecer a chover.
No dia seguinte, véspera da matança, as mulheres picavam e amassavam as cebolas, a salsa e os orégãos, outras coziam o bolo no forno, o pão de duas farinhas, coziam-se os inhames, assavam-se batatas-doces, preparava-se o bacalhau para o almoço do dia seguinte, caso não se tivesse conseguido peixe fresco, outras preparavam as salgadeiras e panelas de barro para salgar o conduto e colocar a banha, etc.

No dia da matança, logo manhã cedo, começavam a chegar os primeiros convidados; os parentes e amigos
mais chegados, que vinham ajudar a matar e preparar o porco.
Serviam-se os primeiros copinhos de aguardente. Alguns faziam feias caretas, outros lamentavam o tamanho do copinho, e ainda outros picavam o tabaco da horta com uma navalha, e embrulhavam o seu cigarro em papel próprio ou casca fina do milho. Deitava-se o olho ao animal ainda vivo no curral, teciam-se alguns comentários sobre a vida e progressão do bicho: se tinha sido de boa boca, se tinha sido sempre saudável, discutia-se e até se apostava o peso do mesmo, que depois de morto, por vezes, era pesado para tirar as teimas.

Quando eram de má boca, havia quem procurasse certas “pessoas entendidas na benzedura do quebranto”, que através de alguns pelos do animal, normalmente do rabo ou do lombo, lá lhe resolviam o problema”.

Mais um copo de aguardente e, ouvia-se uma voz mais alta:

É rapazes! Vamos a isto! Os mais afoitos saltavam primeiro a dentro do curral de corda na mão para, depois de agarrarem o bicho, amarrarem-lhe o focinho para não morder e fazer menos barulho e depois as patas traseiras e dianteiras para não espernear, o que poderia estorvar a manobra do enfiar a faca.

Era colocado sobre um tabuleiro, normalmente dois tabuões lado a lado sustidos por duas travessas de madeira ou uma porta velha sobre dois cestos, e o matador - marchante - lá lhe enfiava uma comprida e aguçada faca rumo ao coração. Quando assim não acontecia, era o diabo depois para sangrar o bicho e uma vergonha para ele marchante. Nos próximos dias não se falaria noutra coisa na freguesia.

O sangue era aparado num alguidar normalmente de barro – na altura ainda não existiam os plásticos – enquanto outra pessoa já o ia mexendo para não coagular de imediato.

Depois, era logo misturado nas cebolas que voltavam a ser amassadas juntamente com um bom cesto de asa de salsa picada, orégãos, o véu do porco e o cravinho, tudo bem picado em pequenos pedacinhos.
Aberto o porco, eram-lhe retirados os chamados “miúdos” e levados num alguidar para a cozinha, onde se procedia à separação das tripas para desmanchar e lavar.
As do intestino grosso e o paio, destinavam-se às morcelas, e as do intestino delgado para a linguiça.
De seguida, depois de muito bem lavadas, as tripas do bicho com água, farinha de milho, limas azedas, sal, etc., eram cheias e cozidas as morcelas e, colocadas no fumeiro a enxugar.
Enquanto isto, alguns iam acabando de amanhar o porco, e outros bebiam mais um copinho de aguardente.

Os bofes (pulmões) e o coração eram para guisar com batatinha branca e arroz, para a ceia das visitas que viriam à noite ver o porco e também os que normalmente vinham cantar as morcelas, juntamente com umas morcelas fritas, peixe do almoço, o fígado e uns valentes copos de vinho do Pico.

À noite, era hábito, alguns próximos da família ou mais arrojados, formarem um ranchinho.

Já escuro e de surpresa, quando menos se esperava, desatavam a cantar e tocar tambor e ferrinho fora da porta da cozinha:

                           Ó Sr. dono da casa
                           Está direito, não está torto
                           Nós tivemos a notícia
                           Que matastes o teu porco

                           As morcelas eram grossas
                           O toucinho recheado
                           Dai-nos uns copos de vinho
                           Também delas um bocado
                           Ó Sr. dono da casa
                           Porta aberta e luz acesa
                           E uma morcelinha assada
                           Para cima dessa mesa.

                              Ó Sr. Dono da casa
                           E mais toda a sua gente
                           Há-de-nos também brindar
                           C’ uma pinga de aguardente.  
                           Ó Sr. Dono da casa
                           Trabalho mal amanhado
                           Aguardente não é boa
                           Sem um figuinho passado.

                           Ó Srs. donos da casa
                           Bem nos podeis desculpar
                           Sabe Deus daqui a um ano
                           Quem vos virá visitar.

Em muitas casas, pelo serão, bailava-se a chamarrita, acompanhada dos instrumentos de corda e as vozes dos óptimos cantores da freguesia. Outros jogavam às cartas, contavam anedotas, etc.
As tripas do intestino delgado eram para encher a linguiça, feita com a melhor carne cortada em pedacinhos miúdos, depois de colocada numa vinha’lhos forte, temperada de preferência com laranjas azedas durante 4 a 5 dias num ou dois alguidares de barro, mexida e provada, várias vezes ao dia.
Depois de pendurado o porco - em São Caetano normalmente pelo focinho - a um tirante num lugar próprio, na cozinha ou na loja, era aberto de cima a baixo agora pelas costas, onde eram enfiadas umas canas atravessadas que, mantendo a carne aberta, mais facilmente enxugava.

Lavavam-se as mãos e toca a chegar para mesa, pois já não era sem tempo e apetite não faltava.

Estávamos em pleno Inverno. Frio de rachar, e, com aqueles copinhos de aguardente, o molho de peixe e o feijão assado no forno a bom cheirar, faziam crescer água na boca. Além disso, caía muito bem um bom pedaço de queijo de São João com uma fatia de pão de trigo ou de duas farinhas, aquele vinho de cheiro do Pico escolhido para o dia... Tinha valido a pena.

Depois dum valente almoço, alguns lá caminhavam para suas casas ou trabalhar as suas vinhas, se o tempo o permitia.

Era vê-los por aquelas vinhas, altura em que eram arranjadas, ora trabalhando, ora encostados a um abrigo, - uma parede - com um saco de serapilheira de capuz ou um casaco velho por cima das costas, enquanto chovia e ou caía granizo.

Os ventos fortes e mais frios eram predominantes do quadrante Oeste a Norte. Contra aquela parede mais alta sempre fazia mais uma abrigadinha, a menos que houvesse por ali perto uma furna vulcânica, o que não era muito raro.

Outros continuavam por mais algum tempo na conversa, jogando às cartas, e, iam então as mulheres e crianças para a mesa, para um também bem merecido almoço.

Durante a tarde enquanto umas enchiam e coziam as morcelas, outras ocupavam-se de certas limpezas e outras, ainda, preparavam já o jantar para os convidados que viriam à noite ver o porco.

No dia seguinte, logo de manhã, desmanchava-se o bicho, partindo-o aos pedaços, como melhor convinha.
Seguidamente, cortava-se um bom pedaço de toucinho e uma assadura do lombo para: O Padroeiro São Caetano, Sr. Padre, Sra. Professora e, normalmente, para o Sr. Guarda-Fiscal lá da freguesia; depois para os parentes, vizinhos e alguns amigos a quem se deviam favores e ou atenções.

A cabeça era logo desmanchada para a sopa de carne, acompanhada de grande quantidade de couves e batatas brancas a servir no almoço.

A restante carne, os ossos e algum do toucinho, eram salgados em salgadeiras de barro, muito bem escaldadas com água a ferver, muito bem lavadas e esfregadas com laranjas azedas que sempre já deixavam ali um certo gostinho.

A salgadeira de barro


O restante toucinho era derretido num grande caldeirão de ferro de onde se extraía a banha para temperar a panela e para a frigideira, e sobravam os resíduos, os saborosos torresmos da graxa, como se chamavam.

Da linguiça, vendia-se uma parte, bem como uma lata da banha, para comprar um outro porquinho para o ano seguinte.
Disse atrás que da mercearia vinha o petróleo para a iluminação mas sou do tempo em que na iluminação das casas, era usado o azeite de baleia.

O azeite era queimado numa candeia de folha-de-flandres que, no meu tempo era normalmente feita no latoeiro lá da freguesia, “mestre António Costa (Lá’faia)”, algumas de boca aberta, com uma asinha para se pegar, e um bico por onde saía uma torcida de fiado de lã de ovelha por onde subia o azeite que ia sendo queimado. Outras tinham a sua tampinha. O fumo que fazia e o cheiro que espalhava pela casa… espantava também os ratos

A Caça à Baleia

A caça à baleia fez-se por quase todas as Ilhas dos Açores, mas eram desta Ilha do Pico os mais bravos e experientes baleeiros. Espalhavam-se pelas restantes ilhas, e outros embarcavam nas baleeiras americanas clandestinamente, nas rochas do calhau durante a noite, situação muito vulgar, nas duas gerações anteriores à minha, como atrás foi dito.

O custo da viagem para os Estados Unidos, onde eram deixados à sua sorte, mal encontrassem a terra, era ter que trabalhar a bordo de seis meses a dois anos, na caça e transformação das baleias, derretendo-as, ou, até encher os tanques da baleeira de azeite.

Desembarcados na América, eram, ao contrário das tartarugas quando nascem, estas para fora, eles para dentro, cada um à sua sorte.

Assim aconteceu também com o meu avô paterno, cujo paradeiro foi a serra de Nevada como pastor – vigia de ovelhas – os chamados “Ovelheiros, ganhando meio peso – meia dólar – por quinzena, alguns casados e com filhos como era o caso dele.

Sou do tempo em que, até o azeite de baleia, era racionado. Só vendiam um litro a cada pessoa, o que fez com que fosse necessário, eu, com apenas os meus 4 anos, ir conjuntamente com os meus dois irmãos mais velhos, para a fila, na chamada casa do Azeite no porto da freguesia vizinha de São Mateus, a cerca de quatro quilómetros de minha casa, onde se derretiam algumas baleias, quando as fábricas da Ilha estavam saturadas.

Era de todo conveniente estar por lá, cerca das cinco horas da manhã para tomar lugar na fila de espera, com as famosas bilhas de genebra – grés – que só por si, pesavam quase um quilo, caso contrário, corria-se o risco de regressar a casa sem azeite para a candeia.

Da baleia, extraíam também os dentes de marfim, com os quais, mais tarde, se fez artesanato alusivo à causa; ora com gravações em relevo, ora com scrimshaw.

Nesta especialidade, havia grandes artistas. Em meu entender e no meu tempo, era a Fátima Madruga, a mais perfeita. Além da perfeição na execução da obra, apresentava motivos reais relacionados com as cenas da caça à baleia e autênticas fotos dos mais bravos baleeiros do Pico.

Tenho muito orgulho numa pequena colecção de dentes de cachalote com alguns dos melhores trabalhos, feitos pelas delicadas mãos da referida amiga Fátima Madruga, o que já hoje vai sendo coisa rara.


Também me lembro muito bem de alguns pescadores de
São Caetano que tinham embarcações de pesca próprias, como por exemplo: o Tio Francisco Jorge, Tio Manuel da Ritinha do Cabeço, o irmão António da Ritinha, os Vigias – Manuel da Vigia, filhos e irmãos, o José Mateus e filhos, o Manuel Ferreira e outros irem pescar aos albafares bravos, para derreter os fígados para queimar o óleo na iluminação das suas casas.

Usava-se ainda este azeite de albafar para lubrificação de certas ferramentas e rodízios, nomeadamente dos moinhos de vento e atafonas de moer o milho, puxadas pelo boi, e havia ainda quem nele molhava um comprido cordão de fiado da lã, que se punha à volta das plantações de batatas-doces nas hortas, para afastar os coelhos bravos, que normalmente vinham das suas tocas comer a rama das mesmas.
Na lha do Pico, como é sobejamente conhecido, vivia-se muito à volta do mar e por conseguinte também da baleia. Não exclusivamente, mas como complemento, sempre era uma boa ajuda, receber por uma soldada no fim do ano, cerca de 1000$00 mil escudos (hoje 5 Euros). Todos tinham, geralmente, os seus pedacinhos de terra, onde cultivavam umas batatas, inhames, milho, feijão, abóboras, etc. Isto nos anos 40/50.

Mais por fim, em anos bons, chegou-se a dividir soldadas anuais entre os 3.000$00 e 5.000$00 escudos (quinze e vinte e cinco euros).

Existiam várias armações baleeiras na Ilha: No Cais do Pico, Vila das Lajes do Pico, Ribeiras e ainda outra na Freguesia da Calheta de Nesquim.

Havia frotas estrategicamente colocadas nos diversos portos da Ilha, para que pudessem chegar mais depressa à ou às baleias, consoante se tratasse duma baleia – cachalote – grande e isolada, ou de um cardume.

No meu tempo, recordo-me de existir uma dessas frotas instalada em São Caetano: dois botes e uma lancha, a Espartel, a lancha que melhor andava na sua época. Em São Mateus: três botes e uma lancha, na vila das lajes, 14 botes e quatro lanchas, na freguesia das Ribeiras, duas lanchas e quatro botes na Calheta de Nesquim, duas lanchas e sete botes e ainda uma grande frota que não sei quantificar, no Cais do Pico.

Quero deixar aqui uma ressalva, no que diz respeito às quantidades cuja certeza absoluta não tenho, pois ainda hoje alguns que continuam atentos, não me perdoariam se os esquecesse.
Havia duas fábricas de transformação das baleias. Uma nas Lajes do Pico, outra no Cais do Pico, onde além da transformação do toucinho em azeite, se fabricavam também farinhas da carne e dos ossos que se destinavam a adubos de algumas sementeiras e alimentos de certos animais. Como já disse, também se derreteu no porto de São Mateus em grandes caldeirões de ferro.


A Vigia da Baleia 


Existiam vigias – uma pequena cabine com uma ranhura horizontal na frente – em vários pontos vitais da ilha, normalmente sobre cabeços ou lugares altos e bem vistosos, feitas em pedra.

O Vigia de Baleias

Os vigias ali colocados, principiavam manhã cedo no seu labor, correndo com os seus binóculos de 18 vezes minuciosamente os amplos horizontes à sua vista, na expectativa de serem os primeiros a localizar as baleias e atirar o foguete. Os vigias ganhavam um pequeno ordenado e também uma soldada.
Havia muita rivalidade entre as diferentes companhias a laborar na ilha.

Dia de baleia, era dia de alvoroço na freguesia. Estalava o foguete e todo o baleeiro, estivesse onde estivesse, largava tudo e corria em direcção ao porto. Nem passava em casa.
A mulher ou filhos iam levar-lhe a comida e mais alguma peça de roupa ao porto, enquanto estes iam arreando os botes, pois a lancha já se encontrava no mar, presa na sua amarração própria.
Os baleeiros tinham outras actividades. Não era possível viver exclusivamente só da soldada.
Consta-se – e é verdade, pois foi-me confirmado pelo próprio – que no lugar da Ribeira do Meio, freguesia das Lajes do Pico, o mestre Francisco Machado, mais conhecido pelo “Barbeiro” – sogro do meu irmão Jorge e meu grande amigo – que exercia também e com muita perícia aquela arte, ao ouvir o foguete para baleia, deixou sentado na cadeira da sua barbearia o João Medina, também conhecido pelo João Cabo-de-mar, com meia barba feita e outra meia por fazer.  

                    
Havia muita expectativa vinda de várias direcções. Os baleeiros na de caçar a baleia, as famílias na de que algo poderia não correrem bem, os armadores e os merceeiros, na de lhe chegar também um dinheirinho, etc.

Não foram, poucas as vezes, que nem todos regressaram a casa. Por vezes as coisas corriam mesmo mal.
As baleias ao sentirem o arpão na pele reagiam das mais diversas maneiras; ora levantando e voltando o bote, ora batendo-lhe com o rabo de cima para baixo partindo-o e deixando tudo e todos espalhados por cima das águas profundas e salgadas, à conta de Deus e à sua própria sorte e até, não poucas vezes, levando o bote de reboque.

Nesta operação, muitas vezes os que eram directamente apanhados, tinham morte quase instantânea. Alguns, nunca mais apareciam.

O Tio Racha

Em São Caetano, na minha infância, o vigia, era o tio Racha, da Calheta de Nesquim, uma figura carismática.

Diziam, os que melhor o conheciam, que o Tio Racha gostava muito duma pinguinha de vinho.

A vigia das baleias, ficava num alto, entre os dois moinhos de vento, que existiam na freguesia, o do Domingos Jorge e o do mestre Pompeu Simas, no meio das adegas, do chamado Caminho do Meio. Muitas pessoas o convidavam para ir à sua adega beber uma tigela – de barro – de vinho.
Eu e outros rapazes da minha idade gostávamos muito de ir visitar o tio Racha à sua vigia, para ele nos deixar pôr os olhos por alguns momentos no seu binóculo de 18 vezes. Aquilo tinha um sabor especial, naquela época.
Coisa engraçada e não rara, era que, muitas vezes, passávamos no caminho e víamos o chapéu do tio Racha pela fresta horizontal da vigia sobre o binóculo. Chegávamos lá, era de facto o chapéu e o binóculo do Tio Racha, mas, o resto tinha andado. Tinha ido consolar o corpo e a alma para a adega dum amigo qualquer que o havia convidado.

A certa altura por volta dos meus 13, 14 anos, era mestre da lancha Espartel o Sr. João Abraão, filho do mestre João Abraão (pai).

Pessoa boa, bom conversador e contador de histórias, mestre João Abraão tinha estado emigrado nos Estados Unidos e contava então muitas histórias americanas. Era amigo de dar atenção aos mais novos.

Gostava muito de mim e prometeu-me um passeio na lancha Espartel – o que seria um acontecimento – à festa de nossa Senhora de Lourdes que se venerava e venera na Igreja das Lajes do Pico, no último Domingo de Agosto, na certeza de que o filho João não lho havia negar.

Eu, esfregando as mãos de contente, dei a notícia em casa aos meus pais e irmãos. No tempo, já era muito bom ir à Vila à segunda maior festa da ilha, e para mais na lancha Espartel!

Qual não foi o meu espanto quando o mestre João Abraão me informou de que o seu pedido não tinha sido atendido por aquele seu filho, de quem ele tinha muito orgulho.

Acreditem que, da forma como ele mo comunicou, fiquei talvez com mais pena dele, do que ele de mim.
Tantos nomes de baleeiros célebres e outras figuras carismáticas, que ficaram na história da caça à baleia em São Caetano.

O povo, duma maneira geral, era bom. Respeitava toda e qualquer pessoa de fora da terra que por lá vivesse ou passasse.

Alguns baleeiros – normalmente os mais simpáticos – eram convidados para algumas matanças de porcos, para ir à adega beber umas tigelas de vinho, para ajudar a vindimar as uvas, etc. Estes agradeciam, pois normalmente gostavam muito daquele precioso líquido e sempre levavam para casa um cesto de asa de uvas, para comer mais a família.

Recordo-me ainda dos tempos do Caçoila, do Capão, do Loiro, etc. Profissionais da caça à baleia, que mais para o fim da festa, até cantavam ao desafio.

Muito novo ainda, parece-me estar a ver e ouvir o João Capão a cantar ao desafio a sua cantiga ao Caçoila:
                        
                        O Racha mais o Caçoila
                        São dois amigos leais
                        Se o racha gosta de vinho
                        O Caçoila muito mais

Com a entrada de Portugal na União Europeia, no ano de 1978, foi proibida a caça à baleia na Comunidade Europeia e, por conseguinte, também nos Açores.
No Pico, onde houve forte actividade, resta apenas e ainda bem, o museu dos baleeiros nas Lajes do Pico, que vale a pena visitar. Ali, pode-se ver tudo, não só em artesanato, mas a própria tenda do ferreiro, o bote, a palamenta, as ferramentas e utensílios que eram utilizados, e dos quais se pode matar saudades.

   
Museu dos Baleeiros – Lajes do Pico

No cais do Pico (São Roque), existe a Fábrica-Museu com todos os seus equipamentos, caldeiras, máquinas, reservatórios, etc., tudo muito bem conservado.


 As últimas Baleeiras Americanas no Porto da Horta

Era nestas baleeiras que embarcavam clandestinamente muitos Açorianos, no século XIX/XX, para os Estados Unidos da América do Norte, durante a noite, em determinadas rochas do mar.

Recordo aqui um caso verdadeiro que ouvia contar aos mais velhos, dum tal Domingos Jorge, irmão do tio Francisco Jorge que bem conheci, e era casado com a irmã Ana da minha Avó paterna, que também foi destes emigrantes.

Domingos Jorge, apesar dos seus onze anos, encontrava-se numa terra a trabalhar com o pai. De repente, chega ali alguém da família, um tio, e diz para o pai do rapazinho: Sabes? A Baleeira vem esta noite buscar pessoal, não queres mandar o vosso Domingos? Acho que era uma boa oportunidade; vai também fulano e sicrano... sempre olhavam por ele na viagem, etc..

O rapaz ouvindo aquela conversa desata a chorar, o que se calcula só deva ter parado já em terras do Tio Sam. Consta-se que foi pegado de braçado e, esperneando como um animalzinho, o seu destino estava traçado.

Levado até a casa, a mãe punha de imediato uns cocos – inhames – que tinha ao lume a cozer, mas que ainda estavam quase crus, numa bolsa de retalhos de pano, para ele levar e comer entretanto. Não havia tempo a perder.

Entregue a bordo, lá seguiu o seu destino. Sabe Deus as que deve ter passado. E por lá ficou para sempre sem que nunca mais tivesse visto os pais, nem voltado à sua terra natal.

Mesmo assim, muitos dos que tinham mais sorte, apareciam cá mais tarde, com um bom cinto de águias em ouro – cada águia valia 20 dólares.
  
A maior preocupação destes emigrantes era conseguir umas poupanças que dessem para comprar uns alqueires de terra no Faial – Um alqueire de terreno, era e ainda é,
960 m2. Além do pão para a família, podiam render anualmente por alqueire, entre três a quatro sacos de milho, conforme os sítios.

Um saco de milho continha 5 alqueires com cerca de treze quilos cada. O conduto já seria mais fácil de arranjar, ora do porco, ora ir pescar uns peixes para o famoso caldo-de-peie do Pico, ou uns sargos, salemas mesmo de pedra, ou até umas lapas.

A base da alimentação era o milho, as batatas-doces, batatas brancas e inhames.



O caldo de Peixe

                                                         Um prato típico da Ilha do Pico

Para quem não conhece e quiser experimentar, fica aqui a receita para uma refeição de cerca de 10 pessoas.
Quanto mais abundante e mais espécies, mais saboroso.

Põe-se um tacho ao lume com água quanta baste até ferver. A esta juntam-se os seguintes temperos:
6 a 8 kg de peixe de pelo menos 2 ou 3 espécies:
Cherne, bicuda, abrótea, garoupa, írio, bouca negra, congro, etc. ;
·         1 Ramo de salsa;
·         3 Folhas de louro;
·         1/2 Kg de tomate;
·         2 ou 3 cebolas;
·         10 bagas de pimenta-da-jamaica;
·         4 dl de vinho branco;
·         3 colheres de massa de malagueta;
·         sal quanto baste.
Confecção:
Corta-se o peixe em postas grossas e leva-se a cozer em lume brando num tacho com água, salsa, louro, tomate e as cebolas cortadas aos quartos, a pimenta, o vinho branco, a massa de malagueta, vinagre e sal a gosto. À parte, cozem-se batatas inteiras descascadas. Num gral, pisa-se a salsa com uns dentes de alho, e sal grosso, ao que se junta depois de tudo em papa, um pouco de vinagre e água ou até o próprio caldo, para ficar bem temperado, mexe-se bem, até ficar a gosto. Para servir, põe-se o tacho na mesa e tira-se o peixe para uma grande travessa. Em cada prato coloca-se um bocado de peixe de cada espécie que se rega com o molho cru e acompanha-se com as batatas e ou bolo de milho. Ao mesmo tempo, serve-se o caldo em tigelas deitando em cada uma colher de molho cru ou vinho tinto, para quem preferir.
Come-se o peixe com as batatas, bolo ou pão de milho, ao mesmo tempo que se vão bebendo uns golinhos do saboroso caldo ou vinho, para quem o preferir. Há quem junte cominhos no caldo ou no molho.
Em São Caetano, alguns deitam vinho no caldo em vez do molho cru. 

O molho cru:
·         1 molho de salsa;
·         5 dentes de alho;
·         1/2 colher de sopa de sal grosso (aprox.) ;
·         vinagre quanto baste;
·         temperar a gosto com o próprio caldo ou água da cozedura.
   
                        O Moinho de vento (do meu Avô)

O meu Avô paterno, António Pinto, como já disse, foi também um dos muitos emigrantes nos Estados Unidos da América. Quando regressou da primeira vez a São Caetano, comprou um moinho de vento. Meu pai contava que, certo dia, quando ele tentava parar o dito moinho, ao passar uma corda à ponta da asa ainda em movimento como era normal para o parar, não o tendo conseguido, foi agarrado à asa, e só escapou a um grande acidente que poderia ter sido fatal, com a ajuda do meu avô materno que, por sorte, ali se encontrava, que, passando novamente o cabo, encerrou a questão. Levou tal susto que prometeu a si mesmo: Moinhos de vento… nunca mais.
Voltou então a emigrar para os Estados Unidos da América, tinha já três filhos. Quando regressou dessa segunda vez, os filhos, já crescidos sem a presença do pai, não queriam aceitar aquele homem lá em casa, de maneira nenhuma.

A minha avó contava-me muitas histórias que o meu avô passara lá nos Estados Unidos e escrevia nas cartas que lhe enviava.

Recordo-me duma quadra dele que ela citava muitas vezes:
                      
                       Olho para todos os lados
                       Nem mulher nem filhos posso avistar
                       Só vejo neve aos montes
                       Dá-me vontade de chorar

Cheguei a ver dessas cartas num baú arrumado na casinha de baixo da minha avó – casa de despejos ou arrumações – que ele tinha trazido lá da América com as suas coisas.
Recordo com muita saudade o meu pai a contar uma cena passada com o meu avô no rancho onde trabalhava, lá nos Estados Unidos:
Certo dia, estava o meu avô no seu trabalho, cuidando do gado. Viu aproximar-se dele um indivíduo montado num bonito cavalo. Apeou-se, amarrou o cavalo, e, dirigindo-se ao meu avô, pergunta-lhe: Podes deixar-me dar água ao meu cavalo? Meu Avô respondeu-lhe: Sim, penso que o meu patrão não se irá chatear.
Entregou-lhe um balde para o efeito e, o dito homem, depois de dar a água ao cavalo, atira o balde ao ar e dá-lhe com o calcanhar da bota, tendo o balde ido parar longe.
Meu avô todo irritado com tal atitude, dirige-se ao homem em tom severo e pergunta-lhe: Então é assim que o senhor agradece a quem o serve?
Resposta: O teu patrão, o Mela é muito rico, esse balde não lhe faz falta nenhuma! Meu avô respondeu-lhe exaltado: Se o meu patrão é rico, é do seu trabalho e eu estou aqui para zelar pelas coisas dele, como se fossem minhas. É para isso que ele me paga.
O Homem deu uma valente gargalhada, montou o cavalo e zarpou.
No final do mês, qual o espanto do meu avô, quando foi chamado ao escritório do patrão.
Todo nervoso, sem saber o que se iria passar, depara com o “homem do cavalo” que lhe pergunta: Conheces o Mela? Diz meu avô: Não senhor, não conheço. Então ficas conhecendo: O Mela sou eu. A partir desta data tu serás o encarregado deste rancho e passas a ganhar o dobro do que estás ganhando ($2 dolars por mês).
O meu avô, depois de regressar ao Pico pela segunda vez, comprou terras na Freguesia na Feteira, na Ilha do Faial e também no sítio do Arrodeio, da freguesia vizinha de São Mateus.

Além disso, ia também à pesca local, e apesar das muitas doenças que aconteceram lá em casa aos filhos e a ele próprio, podemos dizer que era um lar abundante.

A minha avó paterna e a minha tia Margarida, faziam um bolinho de milho muito bem feito, que não desmerecia o da minha mãe. Coisas que nunca se esquecem e deixam grandes saudades pela vida fora.

Fui muitas vezes com a maquia de milho metida de capuz na cabeça, a moer aos moinhos de vento e moagens, tanto na Prainha como na Terra do Pão e São Mateus.

No regresso a casa, a farinha quente, quase nos cozia a cabeça, razão pela qual alguns apanhavam grandes problemas de saúde para o futuro.

No verão, quando não havia vento era quase uma tragédia. Só mesmo nas moagens.

“Janeiro, musgo Inteiro”


Desde muito novo que sentia prazer em chegar-me para junto das pessoas mais idosas.

Adorava ouvir as suas histórias que traduziam realidades e experiências da vida, em suma: a cultura do povo.
Com estas pessoas, aprendi muitas coisas que me ajudaram imenso pela vida fora.

Adorava ouvir as suas conversas, falando de tempos passados, com muita ternura. Uma das conversas que eu muito gostava de ouvir, era sobre os “Provérbios.”

Por muito gostar dos adágios populares e por julgar serem uma forma de homenagear os nossos antepassados e aproveitar as suas experiências e ainda por pensar poder desta forma, dar o meu humilde contributo para que o que eu considero jóias raras da cultura do nosso povo e sem preço, poderem chegar até aos meus descendentes, mais adiante juntarei uma boa relação desses adágios, que eu ouvi e gravei.

Entretanto, gostaria de lembrar aqui alguns deles e seu relacionamento com a vida prática.

Na minha infância, nos anos 40/50, os travesseiros, onde deitávamos as nossas cabeças, eram cheios com musgo. Era o melhor que havia na altura para os pobres, claro.

Os colchões das camas eram cheios com a casca do milho, muito bem lavada e desfiada. Eram assim os nossos colchões “ortopédicos”.

Então, em Janeiro musgo inteiro – era a época em que existia musgo em maior abundância nas pastagens baixas e já a amarelecer, sinal da sua madureza.

Era ali para os matos da freguesia de São Mateus, nas pastagens baixas, que muitas pessoas da freguesia iam normalmente apanhar o seu musgo.

 As pessoas combinavam uns tempos antes, e no dia marcado, caso o tempo o permitisse, lá seguiam os grupos em romaria madrugada cedo, para ir amanhecer ao sítio previsto.
Saco debaixo do braço, bordão – cajado – na mão, farnel para o lanche, que normalmente era um quarto de bolo, uns pedacinhos de linguiça do porco ainda fresca ou dois ou três torresmos de vinha’lhos e uma laranja, tudo muito bem embrulhado num guardanapo amarrado pelas pontas ou numa bolsa de retalhos, toca a palmilhar cinco ou seis quilómetros para cada lado.

Chegados ao sítio, cada um procurava a melhor toiça de musgo.

Arrancava-se e virava-se a raiz para o sol para que este já fosse enxugando e secando, pois à tarde quando se enchia o saco, já estava mais leve.

Merendavam, descansavam e a seguir, uns cantavam outros assobiavam, enquanto o musgo ia secando.

Pela meia tarde, enchiam-se os sacos. Ajudavam-se uns aos outros, e quem tivesse a maior colheita cedia um pouco ao outro que tivera menos sorte ou agilidade.

Sacos para as costas dos homens e, no caso das mulheres e raparigas, para a cabeça. Iniciava-se o regresso a casa, cantando.

Já em casa, estendia-se o musgo no pátio da sala ou no eirado do tanque – cisterna de água – a enxugar durante alguns dias, sendo mexido várias vezes ao dia para mais depressa secar. Depois, enchiam-se os travesseiros que ficavam muito fofinhos, pois o lá existente já estava em moinha.

Naquela noite até se dormia que era um regalo. Sendo um ritual do mês de Janeiro, fazendo parte da tradição, era também uma festa.

Belos tempos! Que saudades

Da base americana das Lajes na Ilha Terceira chegavam as primeiras latas e garrafas vazias, que os americanos punham no lixo e que serviam para levar a sopa e a água para as terras e outros serviços em casa.

Já nos anos 60, vinha da Ilha Terceira o Tio José Baixinho, um micaelense que ali viva, com sacos cheios dessas latas de vários tamanhos, para vender.

O preço era normalmente o milho que a lata levava. Mesmo assim não era nada fácil fazer negócio, pois para muitos, o milho era quase tão raro como o dinheiro, e bem mais preciso que as próprias latas.

Daí o Manuel Canela Fina, quando bebia uns copitos a mais, cantar:

                            Em nome do pai e do filho
                            O Canela não tem milho
                            E do Espírito Santo  
                            Porque não podia durar tanto.

Do lugar do Monte ou Calhau, cujos habitantes viviam quase exclusivamente do vinho, da aguardente e do mar, vinha o Tio Manuel da aguardente, mais a filha Luísa com o seu barril no carro puxado pela vaquinha, procurar fazer o seu negócio, pelas outras freguesias.

O tio Manuel trazia numa mão a aguilhada e na outra a corda da vaca.
               
Entre as freguesias aproveitava para descansar as pernas, sentando-se sobre o varal esquerdo do carro. Mas, sempre que via um luz de automóvel, toca a saltar para o chão, podia ser o chefe de conservação de estradas, era multa certa e lá se ia o eventual lucro da viagem, ou até mais algum. A filha Luísa, vinha sentada ao lado do barril de aguardente, toda embrulhada num xaile preto, e
por vezes, não se sabe bem se apenas do cheiro da mesma, já vinha meia tralhosa.

Na ceve ou num fogueiro do carro, traziam pendurado o lampião a petróleo que os iluminava durante a noite e madrugada e sinalizava também a sua posição na via pública, como mandava a lei.

O lampião de petróleo

No Outono, traziam também castanhas para trocar por cinza das lareiras para adubar as terras, além da aguardente, que na maioria dos casos era trocada por milho, pois dinheiro havia pouco. A cinza e o estrume dos animais eram o adubo usado nas culturas. Não havia outra maneira de tornar as terras mais férteis.

Enquanto uns comiam as castanhas que eram mais ou menos raras para alguns, o Tio Manuel da aguardente lá fazia o seu negócio, levando em troca algum dinheirinho e ainda o precioso milho, o tal indispensável pão dos pobres.

Os Transportes

Primeiro carro a motor na Ilha do Pico

Meu pai contava com muita graça a passagem do primeiro carro a motor da Ilha do Pico, pela freguesia.

Foi assim:
Na missa Dominical, por altura dos anúncios após a homilia, o pároco anunciara que, quem quisesse ver passar um carro sem ser puxado a bestas, estivesse atento. Mas, em cima duma parede. À tarde iria passar então o primeiro carro a motor na Ilha do Pico. Isto por volta do ano de 1920.
Ele tinha razão. À tarde de facto passou o dito carro, e até parou, mas já todo esfarrapado de arrastar nas hortênsias, e até nas paredes.

A experiência do Augusto Pau de Lérias era pouca, apesar de ter ido a Lisboa no vapor de 12, aprender a manobrar aquele novo engenho, que era bem diferente do carro puxado a bestas a que estava habituado a conduzir.

Este transporte servia quase exclusivamente para a distribuição pelas freguesias da mala do correio. Não havia dinheiro para as pessoas se fazerem transportar de carro. Era a pé que se faziam grandes percursos.

O trânsito não atrapalhava ninguém. Guardo na minha memória a chegada do primeiro automóvel a gasolina à freguesia de São Caetano, um Austin A40, cujo proprietário era o Jorge Brum, filho do sr. Manuel de Brum que tinha regressado da América onde parece ter amanhado bem.
As pessoas de São Caetano quando por qualquer razão tinham de se deslocar ao Tribunal da Comarca que estava situado em São Roque, a cerca de 40 quilómetros, o que
ainda hoje acontece, normalmente faziam-no pelos matos, atravessando a corta-mato durante a noite.

Consta-se que, certa vez, um cavalheiro de São Caetano, cujas famílias bem conheço, quando ia numa dessas travessias pelos matos, encontrou-se com outras pessoas doutra freguesia. Fez-se doente, manquejando, até que um dos companheiros teve pena dele e pegou-lhe às cavalitas.
Chegados ao Cais do Pico, quando o outro o arreou no chão, largou uma grande gargalhada e disse-lhe: Nosso Senhor te pague que assim vim muito melhor. Como era de esperar, o transportador atirou-se a ele, mas, como as forças eram desequilibradas, e a intervenção dos companheiros, teve que ficar assim mesmo.

Só mais tarde, um ou outro mais abastado investiu na bicicleta. Primeiro o Carraxana da Terra do Pão, um dos vários serradores de madeiras que havia em São Caetano, e mais tarde, alguns dos muitos curtidores de peles. 

Era o seu meio de transporte para se deslocarem com as tiras de sola metidas num saco de serapilheira, rumo às freguesias mais longínquas do Concelho. Outros continuavam a fazê-lo a pé.

Recordo aqui uma cena passada já no meu tempo e que eu ouvia contar, passada com o curtidor Manuel Jorge – do Alto – que, arriscando a primeira viagem sem saber ainda governar bem o seu trem, ao ver uma velhinha a atravessar o caminho na sua frente na vizinha freguesia de São Mateus, atrapalhou-se de tal modo que, sem atinar a apertar a pêra da buzina ou puxar os travões, gritava:

Arreda-te velha… arreda-te velha! A velha não se arredou… Pronto… lá foram os dois para o chão, embrulhados na bicicleta.

Os Transportes Marítimos


EMPRESA INSULANA DE NAVEGAÇÃO


NAVIO LIMA - Vapor de 12


                   CARVALHO ARAÚJO – Vapor de 28

Havia o vapor de 12 e o de 28. Era assim que eram conhecidos os dois navios que escalavam a Ilha do Pico naquele tempo.
Eram mais que suficientes para levar e trazer para e de Lisboa, e inter-ilhas, tudo quanto era necessário para todas as ilhas dos Açores, escalando-as todas com carga e passageiros. Depois, apareceram ao serviço dos Açores os

CARREGADORES AÇOREANOS:


                                                                  RIBEIRA GRANDE


SETE CIDADES

                                                                          LAGOA

MONTE BRASIL


HORTA


Mais tarde, foram colocados pela Empresa Insulana de Navegação: 

TERCEIRENSE

GIRÃO (combustíveis)



                                                                     DIONE

GORGULHO

JOÃO DA NOVA


NAVIOS DE PASSAGEIROS:



FUNCHAL


ANGRA DO HEROÍSMO


CEDROS


ARNEL


Com o encalhamento do Arnel na Ilha de Santa Maria, onde pereceram quarenta e três pessoas, este foi substituído pelo navio Ponta Delgada, que navegou nos Açores até Março de 1989.
Foi na última passagem pelo porto da Vila da Calheta de São Jorge, onde eu trabalhei durante 15 anos, do navio Ponta Delgada, que até ali habitualmente escalava todas as semanas, que a minha mulher e filhos regressaram definitivamente à Ilha do Faial onde já me encontrava, em Fevereiro de 1989.


PONTA DELGADA
            

E. L. P.

                                          Empresa de Lanchas do Pico


                                L/Motor Velas, Calheta e Espalamaca

Era a empresa que, com estas embarcações de passageiros, prestou tão bons serviços às pessoas das Ilhas do Pico e do Faial – e até as outras ilhas – consideradas “ilhas irmãs”.

No grupo central dos Açores, foram também os iates do Pico que, durante muitos anos prestaram valiosos serviços. No início, era o Andorinha, Bom Jesus, a chalupa Helena, Ribeirense. Mais tarde, o Santo Amaro, Espírito Santo e o Terra Alta.

                                    Iate Chalupa Helena

Iate Ribeirense


Iate Santo Amaro

Navio Motor Terra Alta

Navio Motor Espírito

O Primeiro Avião

Foi já na minha geração – 1939/1945 – que se estabeleceram ligações regulares de aviação, entre os Estados Unidos e a Europa, amarizando na baía da Horta.

Recordo aqui uma história verídica do Tio Manuel Lourenço que muito bem conheci, que encontrando-se a roçar nas pastagens altas, juntamente com outras pessoas, ao ver nos céus “aquela ave” a fazer tanto barulho, ajoelhou-se, e pediu a nossa Senhora:

Ó avezinha de nossa Senhora, não caias em cima de nós.


O Tio Manuel Lourenço era aquele simpático velhinho de São Caetano que, vendo levantar-se uma grande tempestade, estava por dentro da sua janela vigiando as batatas brancas na sua horta. Prevendo o pior, ou seja a perca de todo o seu trabalho e a falta que as batatinhas tanto lhe iriam fazer, ao ver o vento a dar-lhe por todos os lados e estas já quase por terra, muito zangado exclamou: “Nosso Senhor não é tanto bom como o fazem”. Todo zangado pegou numa foice, vai às batatas, e tratando mal o vento tal como o D. Quixote, diz:

Não as vais picar todas sozinho, e zás… lá se foi o resto.

Na Ilha do Pico, terra de “Lobos-do-Mar”, nasceu a pesca do atum nos Açores, nos anos 40.

Foi o mestre João Alves, também conhecido pelo mestre João do Ribeirense que, depois de regressado de São Diego nos Estados Unidos da América para onde havia emigrado e trabalhado na pesca do atum, que ensinou e pôs em prática aquela pesca à semelhança do que por lá se fazia.

Mestre João Alves

Homem do mar, em 1930 mandou construir o iate Ribeirense, para transporte de passageiros e cabotagem.

Em 1937 prepara o "Ribeirense" para pôr em prática aquilo que tinha aprendido em S. Diego sobre a pesca do atum. Como não obteve bons resultados, vendeu-o e, em 1952, investe na sua primeira traineira “Salazar”.

Nesta traineira fazia-se acompanhar pelo seu filho Manuel Alves. Em 1957 entrega a traineira a este, manda construir uma segunda traineira, “Carmona”, e retira-se do mar.
Mestre João foi exemplo da importância dum intercâmbio económico e tecnológico entre Portugal e Estados Unidos que permitiu a modernização e o desenvolvimento da pesca do atum nos Açores.

Naqueles tempos e nos que se seguiram, foi a melhor fonte de receita de boa parte das famílias da Ilha do Pico, e talvez dos Açores.

Depois foi o que se viu, traineiras em todas as ilhas.

Na freguesia de São Caetano, havia duas dessas traineiras, a “Treze de Maio” e a “Terra do Pão”.

Emprego para muita gente, não só no mar, mas também em terra, para homens e mulheres nas fábricas de conservas de atum, e a consequente exportação.

Na Ilha do Pico foram construídas três fábricas de conservas de atum. A primeira nas Lajes do Pico, a segunda na Areia Larga – Madalena, e mais tarde uma nova unidade em São Roque.

De igual modo foram construídas duas na Vila da Calheta em São Jorge, uma no Faial, em São Miguel, Terceira, Graciosa e até na Ilha das Flores.

Há uns anos atrás, esta indústria entrou um pouco em decadência.

As safras foram relativamente fracas pela ausência do atum nos mares dos Açores, à semelhança do que já havia acontecido noutras paragens, nomeadamente nos Estados Unidos da América, em anos recentemente passados.

Por outro lado as condições de vida em terra foram melhorando, e, nesta altura, vai havendo muita dificuldade em encontrar tripulação açoriana para as embarcações, encontrando-se já muitas varadas e outras desmanchadas em tempos, por directivas da União Europeia. No entanto, nos últimos anos, as capturas do atum melhoraram consideravelmente.

Nos Açores, até há pouco, ainda vigorava o sistema de soldada ou quinhão.
Normalmente 50% do produto da safra era para o armador e 50% para a tripulação.

Por esta razão, muitos pescadores não arriscavam a perder o seu trabalho durante um verão, designadamente em anos fracos como os últimos.

Apesar de tudo, nos últimos anos, tem-se notado algumas melhorias, nomeadamente na captura do bonito, tendo vindo dar novo alento a esta arte.
Coisas da Conjuntura

Na minha infância, a vida era mesmo dura. Havia que fazer um pouco de tudo, o que para muito boa gente servia apenas para sobreviver.

Os menos activos passavam grandes necessidades. Disso dou testemunho.

Vi muitas vezes alguns amigos meus que viviam abaixo do limiar da pobreza, ao Domingo, quando vínhamos do banho do mar, já à tarde, quando entrávamos em casa de alguns destes companheiros que moravam muito antes da minha casa, presenciei, alguns à procura de qualquer coisa para comer, mas... nada encontravam.

Contavam-me meus pais que, duas gerações antes da minha, numa casa da freguesia, mais propriamente dos pais da Tia Mariana Bodiche, que muito bem conheci, madrinha da minha mãe, e casada com o tio dela – o Tio José Marques, havia uma grade feita de canas – a chamada queijeira ou caniçada – pendurada nos tirantes da cozinha, como aliás acontecia em muitas casas, onde se punha o bolo de milho e o queijo, para quem o tinha. Por um lado para estar à fresca, por outro, ficava fora do alcance dos ratos (murganhos).

Em muitas casas, o bolo, era distribuído pela mãe e apenas às refeições. Olhava-se e não se tocava.

O Francisco, o mais atrevido, aproveitando uma distracção do pessoal lá de casa, vai à grade, pega num quarto de bolo e em dois torresmos do porco dos tais da graxa, e zarpou a correr.
A irmã, ao ver o desaforo do Francisco, começa a gritar pela mãe: Ó mãe! Lá vai o ladrão da perna mourisca com um quarto e dois...
   
Dinheiro, havia pouco na maioria das casas. Os que só viviam da pesca artesanal, muitas vezes não tinham a quem vender o seu peixe.

Levavam-no para casa e mandavam os filhos com pequenos cambos às portas de alguns mais “abastados” onde o poderiam vender ou lhe darem qualquer coisa em troca.

Era muito falado um caso de um desses pescadores que, nessas circunstâncias, mandou uma filha que bem conheci, a casa do Tio Manuel da Ritinha com um desses cambos de peixe.

Ali, ou porque não tinham dinheiro à mão na ocasião ou por distracção, agradeceram, mas nada lhe deram.

Tendo chegado a casa a moça com as mãos a abanar, a mãe perguntou-lhe: Que é que te deram? Não me deram nada. Esta respondeu: então, vai já lá depressa buscar o peixe e diz que te enganaste, que não era para ali.
Não lembrava ao diabo.
A Casa de Palha 
            
Contava meu pai e os mais antigos que a pobreza era tanta em certas casas, que o avô da rapariga atrás referida que tinha uma família muito numerosa, vivia numa casa de palha – coberta com palha de trigo – com apenas uma porta para a empena. Era tão “grande” (?) – a casa –  que aquele, aproveitava em noites de bom tempo, para esticar as pernas, pela porta fora.

Um filho desse senhor, que eu bem conheci, o pai da rapariga acima referida, também pai de dez filhos e que viviam exclusivamente do mar, tal era a pobreza, que levava para comer durante o dia de pesca, um quarto de bolo – um quarto de bolo, era mesmo a quarta parte dum bolo espalmado feito com farinha de milho escaldada e amassada com água a ferver e um pouco de sal, que era
normalmente cozido num tijolo de chapa de ferro sobre o
lume feito com lenha, com aproximadamente, 1 a 1,5 centímetros de espessura e um diâmetro entre 20 a 30 centímetros.

Contava quem viu que, às tantas do dia, partia um pedacinho e dava a cada um dos dois filhos que o acompanhavam, e, se caía algum farelinho, juntava-o e metia-o na sua boca, era esse o quinhão dele.

Havia também uma barça feita com aduelas de madeira de cedro pelos marceneiros, com água, debaixo do leito da proa da embarcação que, antes do sol a aquecer matava a sede e sempre ia dando para atenuar algumas agastúrias no estômago.

Não eram poucas as pessoas que, por necessidade e falta de dinheiro, iam ao porto, à costa, como diziam, esperar os barcos que viriam da pesca local, aí por cerca do meio dia, para ajudá-los a varar, “para ver se lhe davam uma varagem” – varagem, como lhe chamavam era um brinde, que oferecia o dono ou mestre da embarcação a quem os ajudavam a varar – neste caso um pequeno peixe que, com umas folhas de salsa, alho, sal e água, sempre dava para fazer um simples caldo que enganava um pedaço de bolo ou umas batatas.

Eram tantas as dificuldades, que, no Inverno, com ventos fortes do quadrante sul, que nesta freguesia, empurrava para a terra, viam-se alguns mirolhos a vigiar se o mar trazia qualquer coisa atirada de bordo de algum navio, uma garrafa, um garrafão, uma lata, um fardo de borracha, um pau de madeira de África, etc.

Quando avistavam qualquer coisa, mesmo que uma simples garrafa, que fazia muito jeito, despiam-se e atiravam-se à água, estivesse ou não o mar bravo, por vezes pondo a própria vida em risco, antes que o objecto batesse nas pedras e se partisse.
 
Meu pai, aquele que não queria que nada nos faltasse em casa para comer, na medida das suas possibilidades relativas ao tempo, além de muitas terras, tinha também a sua cédula marítima.

À medida que a família foi crescendo e o trabalho aumentava, não havia tempo para ele ir à pesca. Depositou então a sua cédula marítima na Delegação Marítima das Lajes do Pico, temporariamente, pois assim não havia a obrigação de pagar a assinatura anual, que custava 5$00 (cinco escudos), hoje 2,5 cêntimos.

Nessa altura era frequente algumas pessoas comprarem uma ou meia soldada de peixe a certos pescadores, por vezes a troco de milho, especialmente os proprietários das embarcações que tinham direito a várias soldadas, permanentemente, ou seja: sempre que aquele ia à pesca.
Era uma soldada para a embarcação, uma para os aparelhos (apetrechos) e uma e meia para ele na sua qualidade de mestre.

Durante alguns anos, tivemos uma dessas soldadas comprada e que custava 1000$00 (mil escudos) por ano, hoje, 5 euros.  

Quando os filhos cresceram e foram dando conta do trabalho, meu pai voltou a actualizar a sua cédula marítima e ia ele como marinheiro, buscar a sua soldada de peixe para consumo da família.

A certa altura, havia tal fartura, que sobrava para dar a algumas pessoas da família e até vizinhos.

Mais tarde, depois dos meus catorze anos, pedi a meu pai para fazer também a minha inscrição marítima, licença indispensável para se poder embarcar como tripulante em qualquer embarcação. Se por um lado eu até gostava muito do mar, por outro, havia que assegurar o conduto para casa.
Gostava imenso de ir pescar ao chamado peixe de cima de água, de verão; Eram as cachorras (bonitos) e as bicudas (barracudas).
Normalmente ia no barco do Tio Francisco Jorge. O mestre era o Francisco, o filho mais velho e por sinal meu vizinho. Como companha, iam os irmãos do mestre, António e Hermenegildo, eu, o meu amigo de infância Adelino Simões, meu tio Deodato e o Francisco da Vigia.
Certa noite do mês de Setembro de 1956, arreámos com muito bom tempo. A certa altura, pouco depois da meia
noite, estávamos ali na marca, fora da Terra do Pão, pescando de linha às bicudas.

Por sinal, estava a ser uma boa noite de pesca. Tínhamos dentro do barco talvez mais de um cento delas. Entretanto, começámos a sentir passar por debaixo do barco uns rolos de mar, que aos poucos foram aumentando.

O vento era do quadrante Sul. Formavam-se muitas nuvens negras, no horizonte. O mestre, o Francisco Jorge recentemente falecido, ordenou: Aparelhos para a borda e vamos a remar rapidamente para terra.

Começavam a ver-se os relâmpagos e a ouvir trovoar por todo o lado. Remava-se aos quatro remos, rumo ao porto. As ondas aumentavam a olhos vistos. A trovoada aproximava-se.

Ao longe, via-se no cais uma luz de petromax (luz a petróleo). Era o Florindo, o João de Manuel da Ritinha e o Aldemiro Simas que já haviam varado, e vendo o tempo a crescer, davam sinal aos outros que ainda estavam no mar, para regressarem rapidamente a terra.

O mar cobria já o cais de ponta a ponta. Eram vagas de 3 a 4 metros, que de vez em quando davam algum descanso.

Quando nos aproximávamos do cais num desses momentos de descanso, aqueles que estavam em terra, gritavam: Não encostem! Não encostem! Sigam de vez para o varadouro com tudo a bordo.

A chuva era quanta Deus mandava, acompanhada de forte trovoada. Neste momento, apaga-se-nos a luz. Às escuras, o Francisco não tendo percebido o que lhe diziam de terra, tenta pôr um homem ou dois no cais para passar e segurar o cabo do revés e outro para alar o cabo da proa como era costume, o que até conseguiu. Foi o António Jorge que fora passar o cabo de revés.

Cabos muito frágeis feitos à mão com a tal filaça ou espadana, seca e torcida com uns torcedores de pau.

Vem uma enorme vaga de mar, o Francisco grita: aguenta o revés! Aguenta o revés! O António dá duas ou três voltas com a corda ao pau da ponta do cais, segura bem, mas a força do mar era maior. A corda rebenta, e o barco atravessa-se.

Vem a segunda vaga de mar, volta a embarcação, vem a terceira e a quarta, e, ficam à deriva embrulhados na água, barco, bicudos, albarcas, cestos de asa, remos, tilhas, etc. etc.

Ouviam-se os gritos. Todos imaginaram o pior.
Quando o mar voltou a acalmar um pouco, estava cada um para seu canto. Eu fui projectado pelas ondas para cima dumas rochas, ali ao lado direito da entrada do caneiro, onde me consegui agarrar.
Um ou outro sempre se conseguiu pôr a salvo sem grandes moléstias, o António e o Hermenegildo, ao tentarem equilibrar o barco, na tentativa de salvar o seu ganha-pão de grandes prejuízos, ficaram debaixo dele, e por conseguinte com as pernas esfarrapadas.

Com a ajuda dos que estavam em terra, sempre se varou o barco, que ficou muito danificad
Ninguém pensava mais em bicudas nem albarcas. Parecia um sonho o que acabava de acontecer.

Enquanto isto, o Neves, jovem afoito, amestrando o barco do tio dele, José Mateus, continuava pescando, como se nada se passasse, indo um pouco ao sabor da maré, já do porto para Oeste, ali para os lados da ribeira velha.

Fomos nós que, depois de terminada a nossa penitência, os ajudámos a salvar, evitando que passassem pelo mesmo.

Na vida de cada um, há sempre coisas que marcam, mais que outras talvez até mais importantes. Para mim, esta é uma delas.

A certa altura, era eu companheiro de pesca do Tomé, proprietário duma pequena embarcação de pesca local.


No dia seguinte, iríamos à pesca das garoupas e peixe-rei.
O melhor isco era a moira – pequenos caranguejos – que se apanhavam à mão, uma a uma, entre as pedras à beira mar.
Foi então que, eu mais o meu vizinho e amigo Eduardino, fomos ali para o lado do porto, abaixo do poço de maré, virar pedras e apanhar moira.

Ao meu mais pequeno descuido, o Eduardino que estava ali à minha frente, de costas viradas para mim, atira uma pedra bem pesada para trás, e onde a pedra havia de cair? Precisamente onde eu tinha a minha mão direita, apanhando-me a falangeta do dedo polegar, cuja unha se descolou.

O sangue corria abundantemente e eu, corria direito a casa, a levar aquela oferta à minha mãe.

Esta sem hesitações, e a chorar lágrimas gordas, lá me acompanhou ao Sr. Correia da cooperativa, para fazer o respectivo curativo.

O Senhor Correia

 O “médico” da freguesia de São Caetano

Manuel Correia da Silva, natural da Ilha de São Miguel, veio para São Caetano por casamento com a senhora Anastácia Silva que lá residia, na companhia do Pároco da freguesia, o Padre João Goulart, seu tio e padrinho.

Ele era o Regedor e tinha a maior loja da freguesia – a Cooperativa – mercearia, líquidos, fazendas, vidros, o correio e mais tarde o telefone público.

Pessoa bondosa, merecedor de todo o respeito e consideração da população, a quem quase todos deviam muitíssimos favores e atenções pelos bons serviços que lhes prestava.

Ele, com os fracos recursos de que dispunha, fazia muitíssimas operações, algumas com certa delicadeza, quase milagres.

Eram dedos, braços e pernas cortados com foices, machados e outras ferramentas, eram rapazes com as cabeças rachadas, eram as mulheres com os peitos infectados, nomeadamente por altura dos partos, a quem os abria, era uma simples dor de cabeça ou de dentes, a quem aconselhava e vendia o respectivo comprimido, etc.

Fazia os curativos e dava injecções a quantos lá aparecessem, ali no quarto de dentro, ou do cofre, como era conhecido, onde havia um velho banco corrido, de madeira, e um balde em zinco com asa de verga, para pôr os pensos usados e aparar o pingo da água oxigenada e ou da tintura e onde colocava o penso substituído.

Utilizava os seus produtos, as suas ferramentas, desinfectantes, agrafos, etc., sem cobrar um escudo a ninguém.

Largava de imediato tudo o que estava fazendo, sempre que alguém precisasse dos seus serviços.

Alguns, como forma de reconhecimento, lá o iam ajudar a vindimar ou coisa semelhante, outros, por atenção e como forma de reconhecimento, faziam as suas compras lá na loja dele.

Havia apenas um médico em cada sede de Concelho, o Delegado de Saúde, porque era obrigatório, e que dava e sobrava.

Não havia dinheiro, nem comparticipações do estado na assistência médica e medicamentosa.

Era praticamente a natureza a gerir a saúde das pessoas, para além duns chás caseiros feitos com ervas, e a preciosa ajuda do Sr. Correia, a mais-valia para toda aquela gente.

O Picaroto, normalmente era um homem forte. Diziam os de outras ilhas em ar de graça, que no Pico, quando nascia uma criança, era atirada aos pés da cama, normalmente de ferro. Se resistia, era boa para criar; se morria, é porque não era boa para criar.

Ao médico, só se ia quando a coisa era já muito grave. Morria muita gente do “mal da Ave-maria”, a actual trombose e ou enfarte.

Recordo-me aí por altura dos meus sete anos de, um filho duma amiga de infância da minha mãe, vir a nossa casa e, dirigindo-se à minha mãe disse:

Ó senhora Isabel: minha mãe manda dizer, se a senhora tem umas cuecas do Mário que possa emprestar para ir com o nosso Manuel ao Sr. Doutor. Ele está muito doente.
Como se vê, umas simples cuecas, não eram para todos, naquela época.

Coisas da época

A carne de vaca, era de categoria única. Um quilo de carne com osso, custava 5$00 (cinco escudos) mas, o António Cabral – o marchante - não arriscava a abater uma vaca, pelas festas do Senhor Espírito Santo ou do Natal, altura em que muitas pessoas sempre comprava o seu bocadinho de carne de vaca, sem primeiro correr de porta em porta, as casas daqueles que lhe pareciam potenciais clientes, fazendo o seu rol. Mesmo assim, uma vaca de cento e tal quilos, dava e por vezes sobrava.

Já na altura, meu pai era proprietário de três pequenas quintas de laranjeiras. Uma que comprou ao Tirano, que era a melhor, onde as laranjas era muito doces, no sitio do Marrocão e outras duas que ele mesmo plantou.

A segunda, também no Marrocão, onde havia as muito saborosas laranjas brancas, e a do curral das galinhas, que ficava ao lado de casa, junto ao tanque do vizinho sr. Fontes.

Eu e os meus irmãos, éramos constantemente assediados pelos amigos: “Vamos à vossa quinta”. Lá íamos. Era gosto vê-los a comer laranjas.

Graças aos meus pais, nunca conheci certas dificuldades que via noutras familias.

Trabalho nunca faltou, é certo, mas também uma certa abundância na mesa, na adega, e até nas terras, onde geralmente havia quase sempre fruta da época.

A Saca de Roupa da América

De todas as ilhas dos Açores já naquele tempo havia muitos imigrantes nos Estados Unidos da América. No nosso caso, refiro-me ao Tio da minha mãe, Manuel Marques. Este só regressou de visita a primeira vez passados cerca de 40 anos. Depois de conhecer bem a família, irmãos e sobrinhos, regressou à Califórnia.

Passados alguns tempos escreveu à minha mãe dizendo que lhe tinha enviado pelo correio uma saca de roupa. Foi uma enorme alegria lá em casa. Contavam-se então as semanas e dias para que chegasse a dita. Pelo correio, as pessoas eram avisadas de que tinham oito dias para levantar na Estação dos Correios da Madalena a sua encomenda. No dia seguinte, alguém da família ir esperar a camioneta da carreira que passava em São Caetano às sete e quinze da manhã, para ir pedir ao “Senhor Luís” – condutor da dita - para lhe levantar e trazer a respectiva saca. Normalmente, oferecia-se ao Sr. Luís 2$50 e entregava-se-lhe mais 8$00 para o levantamento da mesma. Era um dia de expectativa da família. Estivéssemos onde estivessem, à hora da passagem da camioneta, toda a família estava em casa para assistir à abertura.

Era uma euforia total; cada um do seu lado a ver o que eventualmente lhe pudesse servir. Toca a experimentar e, quando servia, era uma grande alegria. Recordo que vinha sempre um embrulho com pedaços de “angrim” para eventuais remendos que, quase sempre eram precisos. A pobreza era normalmente um factor comum nas famílias.



Desde muito novos, os filhos deste casal entravam num ambiente de trabalho, no amanho das terras – pior ainda para os meus irmãos mais velhos, mas, eu não fugi à regra, principiando desde muito novo (6 anos) a levar o comer aos irmãos mais velhos e ao pai, às terras.

Tenho imensas saudades daqueles tempos em que, apesar de certas faltas, havia alegria, as pessoas normalmente eram sinceras, havia palavra de honra, as pessoas respeitavam-se, as crianças tratavam os mais velhos por tio, ou senhor e, ao passarem por eles cumprimentavam e tiravam-lhes o seu chapéu:

Bom dia, Boa Tarde, Boa Noite, mais que não fosse.

Hoje... está mau de mais para o meu gosto, e como diz o povo, a procissão ainda vai no adro.

As Profecias
  
Na minha infância e adolescência, ouviam-se as pessoas mais antigas contar muitas histórias de Profecias.
Uns riam-se, outros acreditavam, outros encolhiam os ombros, e ainda outros diziam que nem crer nem abusar. 
Se não é apenas confusão minha, verificam-se hoje coisas que se assemelham a certos ditos das pessoas mais antigas daqueles tempos.

Uma das que sempre tive presente, era contada com muita graça pelo Jaime Marques, primo da minha mãe, que parafraseando o velho tio Silveira da Terra do Pão, pessoa inteligente lá da Freguesia, e que lia muitas dessas profecias, dizia:

Há-de vir uma época, em que “os trampas hão-de se erguer e é que hão-de mandar”.

E acrescentava o Jaime: “e eles estão aí”, já se ergueram.
(não há regra sem excepção, digo eu.)

No Inverno, havia as “folgas”, onde os mais divertidos se juntavam a convite dos organizadores, geralmente os donos da casa ou um conjunto de amigos. Comiam, bebiam, bailavam e cantavam até às tantas da madrugada, senão até de manhã, se era Domingo ou dia Santo.


Pelo Carnaval, além das máscaras, faziam-se as danças, das quais também cheguei a fazer parte, que desfilavam pelas ruas da freguesia.

Os rapazes, nos dias de chuva, Domingos e dias Santos, entretiam-se com os jogos tradicionais

A Festa dos Cornos

No dia 25 de Abril – dia de cornos – à tarde, fazia-se a festa dos cornos, com procissão e, no fim, o sermão dos cornos.

A procissão saía normalmente do lugar do Caminho de Cima, sob a orientação do António Cabral, grande entusiasta desta festa, auxiliado por outros companheiros, nomeadamente, o Manuel Branquinho, o Horácio e muitos mais.
De guiões erguidos – feitos de sacos de serapilheira – com lindas aparelhas de cornos ali desenhadas, uma coroa em arco de chapa daquela que servia para cintar as barricas do vinho, com um grande corno preso a meio e ao alto, entre um quadrado de varas de canas seguradas pelos “Irmãos”, uma lata velha com brasas contendo cornos a arder lá dentro servindo de incenso, lá vinham até à Prainha, tocando búzios e campainhas e apupando aos irmãos que encontravam pelo caminho, obrigando-os a ajoelhar, beijar o corno, coroar e por vezes, a acompanhar o cortejo.

Alguns, os mais desconfiados, davam o cavaco; zangavam-se e outros, perto daquelas horas, saíam de casa; fugiam por veredas e canadas onde se escondiam entre as faias. Desgraçado daquele que desse o cavaco, eles, os da irmandade nunca mais o largavam.

Assim se percorriam as principais ruas e canadas da freguesia, procurando os irmãos para coroar e beijar o corno.

À tardinha, a festa encerrava com o tradicional sermão dos cornos.

O sermão, normalmente andava à volta do corno. Havia cornos das mais variadas bitolas. Uns eram elogiados porque eram mansos, outros criticados porque eram ariscos, zangavam-se e até fugiam, e ainda havia os que investiam mesmo a sério.

Meu pai era dos bons oradores para pregar o sermão. Recordo-me de algumas quadras que faziam parte do dito:                
                            Este dia de São Marcos
                            Tem que ter o seu sermão
                            Que este dia para nós
                            É dia de grande função.

                            Não há maior irmandade
                            Que a do corno retorcido
                            Que p’ra falar a verdade
                            Enfeita tanto marido.

                            Todo o homem que é casado
                            E vive neste desterro
                            De cornos anda pesado
                            Sem ser bode nem bezerro. 
                                  
                            Se alguém o corno apanhar
                            Meta a viola no saco
                            É ver, ouvir e calar
                            E nunca dar o cavaco.
                      
                            Podemos assegurar
                            Bem nos termos desta lei
                            Que ninguém pode afirmar
                            Desta água não beberei.
                                         
                            Os cornos que vamos vendo
                            É uma praga geral                                                                 
                            Que cada um vai roendo
                            Conforme sente o seu mal.

Com o final do sermão, terminava também a festa. Uns contenteis outros tristes, com sorrisos amarelos, cada um para suas casas. Alguns iam ajustar contas com a companheira, que todo o dia esconjurou quem tivera tal ideia de, por aquele processo, festejar aquele dia.
Festas do Espírito Santo

Nos Açores predominava a religião católica

No início do Verão, faziam-se, como ainda hoje se fazem por toda a Região dos Açores, as festas em louvor do Divino Espírito Santo. Em São Caetano, as pessoas, designadamente a juventude, esperavam ansiosamente pela Terça-Feira do Espírito Santo, conhecida por Terça-Feira de Vésperas, dia das bonitas rosquilhas de massa sovada, na altura o maior império da Ilha do Pico.

Era também pelo Espírito Santo, que as moças deitavam os seus vestidos novos, e os rapazes, quando calhava, o seu fato novo ou sapatos.

Uma semana antes, preparava-se a festa. Colocavam-se os mastros para as bandeiras, desde o adro da Igreja, até ao cimo do alto, pelos dois lados do caminho.

Armava-se a tribuna onde viriam tocar lindas modas, as filarmónicas das Setes Cidades, Madalena e a das Lajes do Pico.

Armavam-se as barracas e cobriam-se de verduras onde se haviam de vender os bons petiscos e mariscos. Eram as favas cozidas com aquele famoso molho picante, os torresmos e costeletas de porco, linguiça, lapas, caranguejos, etc., acompanhados do bom vinho do Pico.

            A procissão das rosquilhas

À tarde, saia a procissão para recolha das rosquilhas.

As pessoas que “davam pão” – as rosquilhas – colocavam-nas em açafates de vimes brancos bem trabalhados, cobertos com lindas toalhas de renda e ou linho bordado, feita pelas mãos das mulheres da freguesia, com normalmente trinta e seis lindas rosquilhas de massa sovada, com cerca de um quilo cada.

Ao portão, aguardavam a passagem da procissão, onde as mulheres, transportando os ditos açafates à cabeça, eram acompanhadas do marido – irmão – com a sua opa vermelha, vara vermelha na mão e fita encarnada da irmandade no lado esquerdo da lapela do casaco, rumo ao adro da Igreja.
À chegada, ao adro, eram colocados os açafates com as rosquilhas em duas alas, a partir da porta do Império ou casa do Senhor Espírito Santo, onde seriam benzidas.
Os Foliões
Depois da bênção do pão, dada pelo padre da freguesia a toque dos foliões, principiavam a ser retiradas pelos irmãos, dos açafates em igual número, e enfiadas em varas vermelhas, que depois de fechado o corte, normalmente em cima do alto, iam sendo distribuídas por todos os presentes, menos aos irmãos que não podiam receber, para que não faltassem rosquilhas no império, pois isso seria uma grande vergonha para a freguesia. Para estes, só ficavam as que restassem nos açafates.

Entretanto, as filarmónicas tocavam para animar a festa, uma de cada vez, enquanto os músicos das outras, passeavam pelo arraial que ajudavam a abrilhantar com as suas lindas fardas brancas. Alguns deles, até faziam grandes conquistas.

Acabada a distribuição das rosquilhas, mais um copo p’ra viagem, e, cada um para suas casas, esperar a próxima Terça-Feira do ano seguinte.

Festas do Senhor Bom Jesus

A seguir, vem a grande festa do Senhor Bom Jesus Milagroso, que se venera no Santuário da vizinha freguesia de São Mateus, aos seis dias do mês de Agosto de cada ano
         Grandes festejos religiosos e profanos.

Semanas antes, preparavam-se todos os caminhos. Pintavam-se as casas, enfeitavam-se as ruas, colocavam-se os paus de bandeiras onde irão ser também colocadas linhas com centenas de balões de papel de várias cores, com uma vela de cera no seu interior onde iria funcionar o arraial – normalmente do Canto, até ao lugar do Passo. Quase toda a gente recebia romeiros doutras paragens.

Na véspera, o conhecido dia do fogo preso, principiava o arraial. Tocavam as filarmónicas constantemente, os amigos encontravam-se; uns passeavam no arraial, outros, os que podiam, comiam e bebiam nas tascas os mais saborosos petiscos e mariscos acompanhados do bom vinho do Pico, outros ainda iam dar a sua pancada na Margarida.

Margarida era uma mesa redonda com pequenos pregos à sua volta, por onde passava a palheta duma roleta, onde se encontravam alguns brindes, normalmente chocolates, uns maiores, outros mais pequenos, e, onde a palheta parasse, era o prémio que se havia ganho. Cada pancada na Margarida custava um escudo. Por vezes ficava uma brincadeira muito cara.
Ao lado, o José do Chico embalava com o pé sobre uma roda o seu “Bismark” – um carrinho feito em madeira, com três rodas, em forma de navio, pintado de branco – enquanto ia anunciando os seus saborosos sorvetes:

“ Olha o belo sorvete ananás que alegra a rapariga, satisfaz o rapaz e refresca as ideias. Custa apenas cinquenta centavos ($50) e cura a dor do apêndice, quando no hospital custa um conto e duzentos (1.200$00) … ICE CREAM…
De facto eram saborosos, e para quem só tinha aquela oportunidade uma vez por ano, havia que aproveitar, havendo os $50, claro.

Mais além via-se uma barraca com latas, funis, candeeiros panas etc., de todos os tamanhos, em alumínio, onde se podia comprar um envelope fechado contendo um número que indicaria a nossa sorte, pela quantia de 2$50 (dois escudos e cinquenta centavos).

Ao lado, estava a barraca do jogo das latas. Eram cinco latas, três por baixo e duas por cima, sobre uma tábua, colocadas a uma distância de mais ou menos quatro metros. Jogar três bolas de trapos, custavam também os mesmos 2$50. Atiravam as três bolas às latas; Quem conseguisse atirá-las todas ao chão duma só vez, ganhava uma cerveja que custava 3$50. Veja-se o lucro, e quando calhava. Normalmente, saía dali cada uma cara triste que nem me quero lembrar.

Debaixo dos plátanos, à sombrinha, lá estavam os vendedores de fruta da Criação Velha com os seus cestos de vimes brancos cheios de uvas – preta e branca – figos, maçãs, peras, maracujás, etc. Cujo cheiro ia longe e fazia crescer água na boca. Para muitos… “ estava verde “.

Pelo arraial, passeavam-se as pessoas, entre as quais, algumas mais carismáticas, e que os rapazes de quem o diabo fugiu, gostavam de encontrar.

Era o tio José do Salão, pequenino, e de pescoço franzido a quem os rapazes achavam graça, pois ele até dizia que empalhava garras e garrafões com vimes, era o João das muletas, era o José Moreia, o Samacaio, etc.

Por outro lado, eram da praxe, as cantigas ao desafio. Todos os anos, lá apareciam, o Tio Brasil, o Funchinha e outros cantadores de improviso.

Em pleno arraial e a pedido das pessoas, lá cantavam ao desafio com as mais afinadas vozes, as mais variadas e picantes quadras.
Eram pessoas dotadas que improvisavam uma quadra a pedido dos interessados, ou, respondendo ao adversário, dum momento para o outro.

Consta-se que um desses cantadores, o Funchinha, que mais tarde terá falecido de cancro na próstata, no Hospital da Horta, já às portas da morte, ao ser visitado pelo seu médico, o Dr. Campos, este, na expectativa de o animar, pediu-lhe para que cantasse uma cantiga.

O Funchinha, que já mal lhe saía a voz, reconhecendo a sua situação, acedeu, e lá vai:

                               Se eu não tivesse dores
                               Nem sofresse das urinas
                               Cagava para os Doutores
                               E p’rás suas medicinas

Do Faial, vinham dois ou três Polícias, mais que suficiente para resolver quaisquer mal entendidos que eventualmente pudessem acontecer.

Animador que não podia faltar na festa, era o José Fonseca, cá de São Caetano. Levadinho do diabo, pegava com todos, até com o pobre do Tio José do Salão. Uma vez, chegou-lhe a brasa dum cigarro ao pescoço.
Metia dó ver o pobre velhinho a gritar e a correr sem poder, sem saber o que fazer, nem onde se devia meter.
Abaixo do adro, nas escadarias de pedra, eram montadas as tribunas, com tabuado corrido, todas seguidas, onde tocavam as filarmónicas. Quando não tocavam, as pessoas iam lá para cima, pois era lugar vistoso onde se descobria a maior área do arraial e um amigo que já não se tinha visto há muitos anos.
Por debaixo do mesmo, andavam os rapazes a brincar, normalmente com as canas dos foguetes.

Uns esforgulhavam para cima, outros para baixo a ver quem atingia primeiro o outro, e outros ainda, os mais maldosos punham-se a vigiar pelas frestas das tábuas, quaisquer distracções das pessoas que estavam na parte de cima.

Era a força do Verão e daí o muito calor. Estou a ver o José Fonseca, a enfiar a sua cana de foguete, até onde pôde, como quem fisga um caranguejo. Adivinhem direita a quê?

Isto prolongava-se pela noite dentro até depois da meia-noite para alguns e até de manhã para outros, alguns curtindo grandes bebedeiras.

No dia do fogo, a véspera da festa, nas traseiras da igreja, procedia-se à arrematação do gado – bezerros, vacas e bois – provenientes das muitas promessas feitas ao Senhor Bom Jesus por algumas pessoas em horas de aflição e que revertiam a favor da paróquia.

Enquanto isto, alguns dos balões de papel de cores, quando a respectiva vela de cera que os iluminavam chegava ao fim, lá se iam incendiando, ao que o pessoal fazia uma grande algazarra, ajudando assim à festa.

No dia seguinte, 6 de Agosto, era o grande dia. À tarde, cerca das dezanove horas, saía a procissão em duas alas, com a imagem do Senhor Bom Jesus, seguida pelos “anjinhos” e outras pessoas, cumprindo as suas promessas com grandes tochas de cera e até algumas de
joelhos no chão, acompanhadas e ou amparadas pelos familiares ou outras pessoas, a toque das muitas filarmónicas, distribuídas pela mesma.

Normalmente, e apesar da grande extensão do giro da procissão, antes de acabar de sair, já entravam o guião da frente e as primeiras pessoas.

Depois da chegada da imagem, esta era voltada para o público e, em jeito de despedida, era tocado o seu Hino, pela totalidade das filarmónicas em conjunto, normalmente sob a regência do professor sr. José Inácio Garcia de Lemos, grande entusiasta da festa, músico e dirigente. Presenciei essa cerimónia, tocada simultaneamente, por treze filarmónicas.

Entretanto, as pessoas continuavam a pagar as suas promessas, quer entregando as suas esmolas em dinheiro aos pés da imagem e recebendo uma estampa ou medalha do Senhor, quer dando voltas à igreja de joelhos, algumas já com eles a sangrar.

No interior da igreja, os padres pregavam sermões, a pedido das pessoas, cumprindo também as suas promessas.
À noite, prosseguia o arraial, enquanto alguns, os de mais longe iam rumando a suas casas nomeadamente os do Faial e freguesias mais longínquas, que iam procurando os autocarros, outros a pé, rumo à Madalena, onde apanhavam as lanchas para a Horta.

Assim terminava a festa. Cada um para suas casas. Havia que esperar mais um ano por igual dia.

Vem aí as Vindimas


Agora, eram as vindimas que se aproximavam. Toda a gente lavava os cestos e preparava as suas vasilhas.
Alguns punham-nos de molho na água salgada. Diziam que não só ficavam limpos, como a própria água do mar lhe fazia bem.

Era a altura dos bonitos (atum) e das bicudas, era preciso salgar e secar alguns destes peixes para se fazerem os saborosos molhos fervidos de cebolada para os almoços e jantares nas vinhas e nas adegas.

As bicudas

Com tanto calor, comer um bom pedaço de bonito ou bicuda num molho fervido com batas brancas cozidas ali mesmo na adega, num caldeirão de ferro sobre duas pedras, com lenha das próprias videiras da vinha da adega, um bocado de bolo quente e umas tigelas de barro de vinho velho ou até misturado com mosto, à sombra, era muito agradável naquela época.
A partir da última semana de Agosto, já começava a colheita normal das uvas, especialmente das vinhas da beira costa, que por serem mais secas, a uva amadurecia primeiro.
Alguns até aproveitavam para fazer o primeiro vinho já para ser bebido às refeições e não só, por altura das vindimas, e outros, os mais sequiosos, aproveitavam-no para matar o vício e rachar a cabeça um pouco mais cedo.

Era uma época alegre e desejada, principalmente pelas camadas mais jovens que se juntavam a ajudar uns aos outros. Dados os ajuntamentos, era também uma bela altura para uns namoricos. Cantavam, riam, brincavam, assobiavam naquelas vinhas, saltando os portais de pedra,
andando por veredas e atalhos num corrupio com os cestos às costas e ou à cabeça, no caso das mulheres, etc.

No armazém do Sr. Correia, em dia de vindima, à tardinha, havia sempre folia; dança, cantares e guitarradas. O saudoso Manuel Correia, pessoa muito divertida, tocava muito bem a sua guitarra. As irmãs, a Leontina, a Palmira e amigas, nomeadamente as filhas do mestre Pompeu a Rosa, a Luísa e a Helena e outras, cantavam e dançavam alegremente.

À tardinha, já nas adegas, alguns escolhiam as uvas. Muitos já as traziam escolhidas das vinhas, esmagavam-nas e eram então postas a fermentar nos balseiros.

No meu caso, a adega dos meus pais era de dois pisos, rés-do-chão e primeiro andar.

O engenho de esmagar as uvas era colocado no primeiro andar onde havia uma abertura no soalho, por onde as uvas caiam já dentro dos balseiros - dois depósitos em betão que existiam num canto do rés-do-chão.

Recordo aqui uma passagem que não deixa de ser curiosa, apesar do que poderia ter acontecido: Estávamos
nessa tarefa de escolher e moer as uvas. O meu filho Vítor com os seus 3 anos e pouco, andava por ali a brincar. Mal o pessoal se distraiu, lá vai o Vítor pelo buraco abaixo. Não sei em que espaço de tempo desci do primeiro andar ao rés-do-chão, subi a escada, meti a mão e o braço pelas uvas abaixo, e agarrei-o pelo cabelo. Para atenuar o susto, gritei-lhe: Não foi nada, não foi nada; Resposta: não foi nada não… ficou uma sandália lá dentro.

Passados cinco a seis dias, eram então sangrados os balseiros pelo borreiro existente na parte inferior dos mesmos.

O vinho que ia saindo era metido nas pipas onde ficava a repousar cerca de dois meses. Depois era passado a grandes celhas de madeira de cedro chamadas adornas.

As pipas eram lavadas e o vinho, agora limpo da borra, ia novamente para dentro delas e a borra era posta juntamente com a casca – bagaço - da uva para queimar no alambique e transformar em aguardente.

Os alambiques de São Caetano

Uns dos ex-líbris da freguesia eram os alambiques do Sr. Azevedo. Um grande armazém dum só piso, com três engenhos de queima: um grande, um médio e um mais pequeno que eram usados conforme a capacidade necessária.
No armazém, havia uma grande zona, onde se encontravam colocados sobre canteiros, grandes balseiros de madeira na vertical e de boca aberta que eram disponibilizados pelo dono do alambique, o Sr. Azevedo, para quem não tivesse vasilhas suas ou sítio próprio, os poderem utilizar, colocando ali os figos das suas figueiras a fermentar, até que fossem também transformados em aguardente. Por outro lado, já ficavam à mão para o dia da queima.

Era hábito no dia de fazer aguardente, e por altura do enchimento em grandes garrafões – normalmente à tardinha - lá mesmo no alambique, dar a provar “da nossa” a quantos ali se encontrassem, começando pelo lambiqueiro, no meu tempo o senhor Augusto.
Escusado será dizer que todos os dias naquela época – Outono - havia sempre alguns cavalheiros que aproveitavam para ir buscar uns galheiros (lenha) a umas terras que (não) tinham ali para aqueles lados, e, à hora da prova, também lá estavam.

Na freguesia, como na ilha do Pico, quase todas as pessoas tinham a sua adega onde faziam e guardavam o vinho e a aguardente.
Havia pessoas que todos os dias davam o seu passeio à adega. Alguns convidavam um ou outro amigo que tinham sempre qualquer petisco, nem que fossem uns chicharros assados com um pedaço de bolo, ou uma lata de sardinha de conserva e umas malaguetas, favas torradas, etc.. Bebiam umas tigelas de vinho ou uns copinhos de aguardente, para quem preferisse.

No dia de São Pedro, 29 de Junho, fazia-se dia Santo. Quase toda a gente ia à adega com a merenda, sem faltar as favas torradas, como era tradição.

À tarde, juntavam-se ali abaixo dos moinhos, no largo de São Pedro, onde hoje existe um pequeno nicho com aquele Santinho.

Havia sempre quem trazia uma viola e ou uma guitarra, e toca a bailar chamarritas do Pico, dançar e cantar.

Às vezes, para alguns a coisa aquecia mesmo a sério e chegavam a casa com a o nariz partido, a cara arranhada a camisa rasgada ou a cabeça rachada, sem saberem como. Ora por empeçarem nas paredes que eram teimosas em não se desviar, ora por certas rixas até de ocasião com os próprios amigos, que se encontrassem - ou não - nas mesmas circunstâncias.        

A Canção do Vinho

            Era o vinho meu bem era o vinho
            Era o vinho que eu mais adorava
            Só por morte ó meu bem desta sorte
            Só por morte é que o vinho eu deixava.

            Quero ver-me encostado a uma pipa
            Com um copo de vinho na mão
            Que o vinho represente o meu sangue
            E o copo o meu coração.

            Quero morrer à porta da adega
            C’o este copo de vinho na mão
            Das garrafas fazer castiçais
            E das pipas fazer o caixão.


O vinho era também uma das poucas fontes de receita de muitas famílias da ilha do Pico.



                               Paisagem da cultura da vinha no Pico

Património Mundial
  
A paisagem da cultura da vinha na ilha do Pico – Açores, abrangendo uma enorme área da Ilha, incluindo adegas, solares e zonas de produção doutras culturas e até algumas espécies raras da fauna e da flora na Europa, foi considerada PATRIMÓNIO MUNDIAL pela agência das Nações Unidas – UNESCO – na sua reunião de 2 de Julho de 2004 na cidade Japonesa de Suzhou.

O vinho verdelho produzido na Ilha do Pico, devido à sua elevada qualidade, além doutros sítios mais ou menos importantes, chegou a ser servido à mesa dos czares da Rússia e também no Vaticano.

As Feiticeiras

Com o verdelho e também com o tinto, apareciam as feiticeiras. Não havia televisão, nem tão pouco rádio. Os bons serões eram passados na adega. Dizia-se que uma vez, o meu avô materno que bem conheci, Manuel Amaro convidou o seu amigo Armando Garcia da Rosa, mais conhecido pelo Armando da Lúcia, para ir à sua adega, na canada dos coxos.

A certa altura, depois de bebidas umas valentes tigelas de vinho, e, quando o juízo começava a baralhar, normalmente entravam na conversa, as feiticeiras.

Já a caminho de casa pela canada dos coxos fora, noite escura, meu avô que era dado a umas certas baldas, abraçara-se a um cepo duma faia seca que estava na berma do caminho e grita: Armando… olha aqui uma feiticeira, chega-lhe Armando que eu tenho-a bem presa.

Ora, o Armando que não estava nada melhor e tinha uma pancada ainda maior que a do meu avô, deu-lhe... enquanto as mãos aguentaram. Ficou como um Cristo.

Havia muito medo, especialmente durante a noite. Até o simples molho de cana ou espiga de milho que levavam às vacas, ao roçar nas pesadas canecas de madeira de cedro, já pareciam almas do outro mundo a atacar por todos os lados. Seriam boas? Seriam más? Era a dúvida.

Os rapazes contavam uns aos outros histórias que ouviam em casa e aos mais velhos, do que tinha acontecido a este e àquele, que eram de arrepiar os cabelos e fazer pele de galinha.
Meu primo Delfim, já falecido há muitos anos no Brasil, era um especialista nesta área. A mãe dele – minha tia Virgínia – tinha estado na América do norte onde nascera, e “muitas delas eram então americanas”, por isso, eram mesmo verdadeiras e muito mais importantes.
Íamos para a casinha de palha de meu Avô na canada dos coxos e, normalmente, quando a cena acabava, estava-mos os dois a chorar e com um medo terrível de regressar a casa sozinhos.

Os mais crentes falavam das almas do outro mundo, de várias formas. Uns imaginavam-nas como pessoas, outros como sombras, outros como barulhos, vozes, aragens, arrepios de frio, etc.
O tio José Leal (da Ribeira), velhinho carismático e sempre bem-disposto, quando bebia qualquer pinguinha a mais, contava muitas histórias sobre feiticeiras que para ele eram verídicas. Dizia ele que, uma bela noite, quando regressava da adega mais o filho Caetano, ali pela canada da Emília acima – uma vereda estreita onde só se passava a pé, que ligava o caminho do meio ou das adegas ao caminho municipal, a Rua dos Bagaços, que por sua vez ligava às outras ruas da freguesia - olhou para o cabeço da Prainha lá ao fundo, e, elas eram às dúzias. Umas para baixo, outras para cima e até outras na direcção dele.

As feiticeiras eram também descritas na maioria dos casos, como que em forma de luzes incandescentes, mulheres, burras, etc.

Faltaram-lhe as forças nas pernas, (!!!) deitou-se e mandou deitar também o Caetano no chão. Elas eram tantas, que só madrugada cedo, depois de até ter pegado no sono, quando levantou a cabeça e viu que já tinham desaparecido, puxou por um braço do filho Caetano e, enchendo-se de coragem disse-lhe: Caetano, agora é p’ra frente, morrer ou viver.

Dava gosto ouvi-lo, todo convencido, a contar as suas histórias e cantar as suas canções muito antigas e, praticamente únicas, à sua maneira: O Frei João, a Nau-Catrineta, etc.

Como já foi dito, naquele tempo, um dos principais divertimentos era ir à adega com um petisco, em família ou com um amigo.

Não havia electricidade, por conseguinte, também não havia iluminação pública. Quando saíam para a rua, viam-se muitas feiticeiras. Eram luzes por todos os lados.
Contavam alguns que certo curtidor que ia a pé vender a sua sola para os lados da Madalena, ao passar pela taberna Danielsítio muito perigoso” - ali no lugar do Campo Raso, às tantas da noite, vira uma burra atravessada no caminho com uma corda de rastos pelo chão, presa ao pescoço.

Pensou: este animal pode fazer prejuízo por aí esta noite. Resolveu apanhá-la para amarrar a uma parede, até que o dono aparecesse.

Quando lhe ia pegar na corda, a burra dá uma valente gargalhada e transforma-se numa mulher que ele bem conhecia e era da sua freguesia, saltou-lhe para as costas, e obrigou-o a ir pô-la em casa dela, caso contrário se a denunciasse a alguém, morreria.

Com estas ordens, quem podia resistir. Foi pegar e andar, e bico calado.

Nota: A taberna Daniel era uma taberna que ficava isolada das casas à beira da estrada, no lugar do Campo Raso. Era um lugar onde, diz a lenda, se assustava muita gente.

Outro caso fora passado com um indivíduo da vizinha freguesia de São Mateus, que namorava uma rapariga com quem casou em São Caetano.

Certa noite quando regressava a casa já tarde, encontrou uma grande bola iluminada com a forma de cabeça de pessoa humana.
Ao tentar passar ao lado dela, esta transforma-se em mulher, e, como no caso anterior, obrigou-o a ir pô-la também em casa dela, com as mesmas exigências.
Como as coisas mudaram?! Agora, com a malandrice que por aí prolifera, tenho a certeza que não teriam essa sorte.

A cultura do Tabaco

Era nas hortas de São Caetano que se cultivava o melhor tabaco, o chamado “tabaco da terra”. Para muitas famílias, a cultura do tabaco fazia também parte do orçamento familiar.

Depois das vindimas, o tabaco que se havia cultivado na horta ali mesmo fora da porta e pendurado na loja ou na adega a secar, estava pronto a ser entorcidado.
Entorcidar o tabaco era abrir muito bem as folhas do mesmo depois de bem seco, retirar-lhe o talo do meio da folha e limpá-lo muito bem, com uma escova.
Depois a pessoa mais jeitosa estendia duas ou três folhas das mais bonitas, louras e largas sobre uma mesa, fazia um pequeno molho com outras folhas que colocava sobre aquelas, como se fazem os charutos, embrulhava-se tudo e torcia-se, fazendo então a tal torcida com duas pernas tipo rosca. Era novamente posto ao sol para secar bem. Depois era pesado em molhos de um quilo e amarrado com um cordão de espadana ou filaça e posto à venda.
Um quilo era mais ou menos dezoito torcidas no nosso caso.

Tínhamos os nossos clientes certos na Freguesia das Ribeiras. João Veludo em Santa Barbara, o José da Silva no caminho de Cima, o Laranja, o José Silveira no Arrife, etc. Era nas hortas da freguesia de São Caetano que se produzia o melhor tabaco da ilha.
A qualidade do tabaco tinha também muito a ver com a qualidade do terreno, para além do cultivo, passando pela limpeza dos rebentos, corte na altura própria, o lugar da secagem, o dia em que era desfolhado etc.

Meu pai era dos que melhor faziam essa manufactura, lá em São Caetano.

A Festa do Natal

Aproximava-se o Natal. Vinham aí as novenas, não se podia faltar. Além da componente religiosa, serviam também de protesto para sair de casa à noite, o que não era autorizado naquela época e ainda para encontrar os amigos e ver as raparigas.



Cerca de três semanas antes do Natal, as pessoas, em muitas casas, punham o trigo em pequenos pratinhos com água, para abrolhar e estar crescido e bem verdinho para ornamentar os altarinhos do Menino Jesus e os presépios.
A senhora Beliza Nunes era, em meu entender, quem fazia o altarinho mais bonito e mais concorrido. Era ali que eu ia mais a minha mãe durante os quinze dias de novena, rezar e cantar ao Menino Jesus.
Parece-me estar a ver e ouvir a minha Avó Margarida Marques, normalmente a orientadora do terço e outras pessoas daquele tempo, que recordo com muita saudade.

Havia os chamados ranchos do Natal, compostos pelos melhores instrumentistas de cordas da freguesia. A guitarra, normalmente bem tocada pelo Manuel Correia da Silva, o bandolim, pelo meu tio Deodato Marques, o violino, pelo António da Vigia, o violão pelo António Prudêncio, a viola, o ferrinho e as melhores vozes dos
jovens e adultos que cantavam os mais lindos versos alusivos à quadra Natalícia.

Nestes ranchos, havia normalmente duas pessoas que cantavam à frente os versos e um grande coro que cantava atrás o refrão, uns e outros a duas vozes.
Era hábito os donos da casa brindarem com aguardente, angelica, aniz ou traçado, normalmente bebidas caseiras, que quase todos tinham, acompanhadas por uns figos passados e ou umas bolachinhas.
Atrás destes ranchinhos juntavam-se muitas pessoas, nomeadamente os mais novos, para os ir ouvindo cantar pelas casas que os recebiam e onde se juntavam também muitas pessoas durante o serão.
Era também hábito as pessoas visitarem os presépios e os altarinhos na quadra do Natal, para ver qual era o mais bonito. Quando o rancho era considerado mesmo bom, visitava também as freguesias vizinhas.

No dia de Natal, à tarde, havia a procissão do Menino Jesus, com as crianças levando as suas oferendas.
Um levava um galo, outro uma galinha, outro uma dúzia de ovos, uma perna de massa sovada, uma cesta de laranjas, uns biscoitos, uma garrafa de aguardente, um garrafão de vinho, um cesto de asa de batatas, etc.
Recolhia a procissão e principiava o arraial, com música de filarmónica, enquanto se procedia às arrematações das ofertas. Os mais afoitos lá iam picando e cobrindo o último lanço. Era uma forma de ajudar a receita da igreja e sempre se levava qualquer coisa para casa. Afinal, eram dias de festa. Alguns aproveitavam também a oportunidade para exibir as suas posses.

Na semana seguinte, era o Fim do Ano. Ano Novo e novamente os seus “ranchinhos”, agora com novos versos desejando um FELIZ ANO NOVO. Contavam-se os dias com esperança e alegria.
Normalmente, para as coisas da igreja, não faltava tempo.
Minha mãe tinha sempre tudo controlado, para que, ninguém lá de casa faltasse a novenas ou qualquer devoção que houvesse na igreja de São Caetano.

Havia uma época do ano que me impunha muito respeito. Era o mês de Novembro, o chamado mês das almas. No altar esquerdo da igreja de São Caetano eram colocados quadros do purgatório e do inferno, com figuras tão feias que não lembrava ao diabo. Era o Diabo com cornos enormes, dentes a condizer, garras de leão, todas num ar de grande sofrimento, para lembrar o Inferno. Para o Purgatório, eram as alminhas também em sofrimento e em lume, espiando as suas penas.

Hoje, não sei que voltas lhe deram que não ouço falar nessas cenas.
Havia missa pelas alminhas do purgatório às sete horas da manhã, noite escura e, novamente, devoção às sete da noite.
Os sinos dobravam como se estivessem anunciando a morte de alguém na freguesia ou por altura dos funerais.
Muitas das pessoas, como eu também, sentiam-se aterrorizadas. Só viam e sentiam almas por todo o lado naquele mês. Nós, os mais novos, tínhamos medo de sair de casa à noite ou de manhã cedo, especialmente os que iam às pastagens altas ordenhar as vacas que saíam de casa madrugada cedo. Parece-me estar a ouvir a minha mãe que vinha sempre à porta à saída e a chorar recomendava sempre que fossemos rezando para Nossa Senhora nos acompanhar e ajudar a passar o caminho.

A Pastorícia

Em São Caetano, a maioria das famílias vivia da lavoura, da agricultura e do mar. Era agradável levantar cedo, nos dias em que, por qualquer razão, íamos para os matos acompanhar os pastores, madrugada cedo, rumo às vacas. Lá em casa, era o meu irmão Celestino, que normalmente se ocupava das vacas, isto no que concerne especialmente à sua ordenha.

Por vezes, consoante a distância a que as vacas se encontravam, era preciso sair de casa cerca das duas horas e meia três da manhã, para percorrer cinco a seis quilómetros para cada lado, por veredas e atalhos com muito mau piso, saltando portais com as pesadas canecas de madeira de cedro atrás das costas penduradas numa foice, onde se cruzava o bordão (cajado).
Havia que chegar muito cedo às vacas, caso contrário seria difícil ordenhá-las. As moscas eram tantas, que o animal não parava com os pés, com a cabeça e com o rabo, tentando sacudir as moscas, mas muitas vezes, lá se ia também a caneca e por conseguinte o leite.

Parece-me estar a ver o sr. João Cardoso, mais conhecido pelo “Tio João de Jacinta”, com uma pequena caneca de madeira de ½ canada, um pouco mais de um litro – à qual eu achava muita graça, dada a sua dimensão - pendurada na foice juntamente com um molhinho de milho basto ou espiga de milho, a caminho da pastagem, (nos matos) percorrendo vários quilómetros, para ordenhar a sua cabra.

Não tenho a certeza se no regresso, a caneca vinha cheia. Contudo, as coisas faziam-se por necessidade, mas, com naturalidade e com gosto.

Parece-me estar também a ouvir o Jacinto Pereira Evangelho, já falecido, a tocar o seu búzio, todos os dias, manhã cedo, quando chegava junto das vacas fora da encumiada (pastagem alta).

Tocava-o tão bem que parecia um rouxinol. Apesar da muita distância, ouvia-se em toda a freguesia, no silêncio das manhãs, especialmente no verão.

O mesmo acontecia com o António Cambóio, quando chegava ao cabecinho, (pastagem baixa) onde tinha também o seu búzio escondido debaixo dumas leivas.

  Romaria à serra da Madalena


22 de Setembro de cada ano

O Ajuntamento do Gado

O ajuntamento do gado bovino na serra, era no dia 22 de Setembro de cada ano – o dia seguinte à festa de São Mateus, na freguesia do mesmo nome.

Nas Juntas de Freguesia, havia o arrolamento para pôr o gado ovino (ovelhas e carneiros) a pastar nos baldios sob a administração da Câmara Municipal, onde era efectuado um registo próprio das quantidades e do sinal de cada pastor, com as suas marcas próprias no gado, registadas na Câmara.
As marcas eram do género: Ovelha branca com a orelha direita traçada na ponta e duas mossas na esquerda por dentro; orelha esquerda, rachada na parte de cima e um furo a meio. 
Um carneiro preto, com a orelha direita rachada e dois furos na esquerda “ etc.
Madrugada cedo, pastores e forasteiros largavam das várias freguesias em romaria a pé com seus farnéis no sarrão, alguns com um grande corno de boi cheio de vinho para a viagem, amarrado com um cordão nas armelas colocadas nos dois extremos e pendurado ao ombro e lá se iam encontrar no lugar da serra da Madalena, donde partiam todos juntos rumo aos baldios juntar o gado com a ajuda dos cães, para o chamado “curral da Câmara”.

À medida que iam apanhando o gado, iam-no concentrando no curral da Câmara Municipal ali existente onde eram depois separados por freguesias.

A Separação do gado

Depois do ajuntamento, comiam e bebiam provando o vinho “dos cornos uns dos outros”, e lá seguiam a pé, conduzindo o gado com a ajuda dos cães, rumo às suas freguesias.
No lugar do costume, no caso de São Caetano em cima do alto, já na freguesia, havia sempre muita gente à espera para ver a chegada e separação do gado. Havia pessoas que só tinham uma ou duas ovelhas e pediam aos amigos que lhas procurassem e trouxessem, juntamente com as deles.

Nos dias seguintes, procedia-se à tosquia das ovelhas. Eram tosquiadas duas vezes por ano. Em Março, antes de irem para o baldio e em Setembro, após a chegada.

Tosquiadas as ovelhas eram colocadas nas vinhas depois de vindimadas, sempre havia por ali umas ervas ainda verdes e outras já secas com que elas se alimentavam.

Os maiores pastores vendiam então a sua lã que era uma das fontes de receita daquelas famílias.

Lembro-me com muitas saudades, como se fosse hoje, da minha mãe me dizer: “Vai a casa do Sr. João Correia e diz à Tia Rosa Pintassilgo (sogra dele) que venda duas libras de lã que a mãe depois passa lá a pagar”.

Estou como quem está vendo a Tia Rosa com os seus oitenta e muitos anos, à procura da balança e dos pesos.

Era uma balança de dois braços com um ponteiro a meio, cujo equilíbrio se verificava na argola que também servia de suporte, presa na mão.
Os pesos, a que eu achava muita graça; eram pedrinhas lisas do calhau, muito bem aferidas e com um orifício onde se prendia a ponta do gancho de um dos lados da balança, brilhantes da gordura das ovelhas que a lã continha. Havia pesos de libra e meia libra.

A lã era utilizada na nossa casa, como aliás nas dos demais, especialmente para, depois de muito bem lavada, cardada e fiada, neste caso pela minha mãe, para fazer as meias para os homens, sempre protegia e aquecia os pés dentro dumas abarcas feitas com uma tira de pele de vaca curtida nos curtidores artesanais.

Meias de lã, só para os mais velhos e ou mais abastados. Havia também quem fazia outras peças de roupa de agasalho.
Indústria de Curtimenta

Em São Caetano, conheci várias destas pequenas indústrias familiares de curtidores de peles a trabalhar. 

Estes transformavam as peles em sola e carneira. A sola era da pele dos animais maiores, bois e vacas e a carneira dos bezerros, cabras e ovelhas que, depois de muito bem trabalhadas, eram depositadas nuns poços com água e cal para lhe retirar o cabelo.

Depois, eram passadas a cutelo para descarnar e tirar impurezas. Seguidamente, eram novamente depositadas no mar amarradas com correntes durante vários dias.
Entretanto, na falta de outras drogas próprias para a curtimenta e ou de dinheiro para as comprar, os curtidores arrancavam faias da terra – planta endémica dos Açores - donde extraiam a casca das raízes, que depois de muito bem batidas, eram colocadas juntamente com as peles a curtir num poço.

A seu tempo eram pregadas com pregos numas tábuas e postas a secar ao sol. Depois de bem secas, eram cortadas às tiras com cerca de 15 centímetros de largura e, posteriormente vendidas.

Com a sola, faziam-se as albarcas, com a carneira, faziam-se as correias, para atar quer as botas, quer as albarcas e ainda as luvas para mondar as mondas agrestes, as silvas, para curtir em estrume no curral do porco e que seria utilizado especialmente nas sementeiras e culturas diversas, nomeadamente a batata branca.

Era com o estrume dos animais que se alimentavam as terras, hoje a chamada agricultura biológica. Na época, não existiam adubos.

Quase todos os curtidores iam vender a maior parte da sua sola, num saco de serapilheira às costas, para as outras freguesias, palmilhando quilómetros a pé ou de bicicleta oferecendo o seu produto de porta em porta.

Às albarcas feitas de sola e com umas arreatas de carneira, normalmente eram pregados uns pedaços de borracha, extraída do meio dos pneus deixados de ser usados pelos automóveis, borracha essa que não era barata nem fácil de encontrar, pois os automóveis eram muito poucos, relativamente à procura.
Mais tarde, a melhor borracha vinha da base aérea das Lajes da Ilha Terceira, proveniente dos pneus dos aviões, essa mais larga e de muito melhor qualidade e por conseguinte mais cara, dada a sua maior duração.

Havia pobreza, mas hoje em dia, apesar da muita abundância, em certos lares, penso que não há a alegria que, apesar de tudo, reinava naqueles tempos. E como diz o povo, ainda a procissão vai no adro.

Mesmo assim, já havia quem dissesse: “vale tudo menos tirar olhos”, hoje, começa-se por tirar primeiro os olhos, pois já facilita as coisas.

No meu livro de leitura da 4ª. Classe do ensino primário, como se chamava, li no rodapé de um trecho, um pensamento salvo erro de Eça de Queirós que sempre me norteou por toda a minha vida:

“A nossa melhor recompensa... É a paz da consciência”

Padaria de São Caetano

Em São Caetano, havia também uma padaria que fabricava muito bom pão. Não só abastecia a freguesia, como também era enviado para botequins doutras freguesias. Era transportado em pequenas sacas, na camioneta da carreira; Para Oeste (Madalena), na viagem das 07,15; para Leste (Lajes) na das 09,30. Eram seus proprietários o António Arruda e a Rita Marques, cuja manufacturação era feita pelos próprios e pelos filhos.

A minha Escola Primária

A minha velha escola – há muitos anos abandonada

Aos sete anos entrei para a escola primária – no ano de 1947 – só se podia matricular quem tivesse sete anos feitos a sete de Outubro de cada ano, data em que abria a escola. Como eu fazia os sete anos a 13 de Dezembro, quando entrei, tinha quase oito anos.

Foi minha primeira professora a senhora Dona Guida Fialho, ela também no seu primeiro ano de ensino com os seus dezoito anos. Senhora muito bonita, meiga e de muito bom feitio que, como é óbvio, muito me marcou, e foi minha amiga até ao seu fim. Nos anos seguintes, foi a senhora professora Dona Rosa do Coração de Maria Alves, senhora madura, exigente disciplinadora e muitíssimo briosa na sua profissão. Residia no lugar da Terra do Pão; Vinha e ia todos os dias a pé, salvo se estivesse muito mau tempo. Que esteja em bom lugar.
A minha escola era mista, com cerca de sessenta alunos de ambos os sexos. Era pequenina, mas ali se construíram grandes alicerces humanos.

No meu tempo, na escola não se aprendia só a ler e escrever, mas também, moral, religião e bons costumes.

Aos Sábados havia canto coral, educação cívica, jogos e brincadeiras. Aprendia-se a conviver, brincar e a cantar, nomeadamente o Hino Nacional, o Hino da Escola, etc.

Parece-me estar a ouvir a minha saudosa professora D. Rosa Alves a ensinar e cantar connosco o hino da Escola que era assim:
                    A nossa escola é um hino redentor
                    Onde a nossa alma vem buscar alento
                    E a meiga voz do nosso professor                                                                   
                    Acompanhada de juvenal amor
                    É já p´ra nós carícia e sentimento

        Abençoada Escola
        Que a todos acarinha
                    Que anima e que consola
                    E a Deus nos encaminha

        É fogo que acrisola
                    Nossa alma pequenina
                    Viva a risonha Escola
                    Da aldeia da Prainha.


Que saudades daqueles santos tempos, em que, nós os rapazes jogávamos ao vintém, com dinheiro de outro tempo (monarquia), ao peão, à pata, à barra, etc. Entretanto as raparigas faziam roda e cantavam.
                           
Tenho também as melhores recordações dos livros que utilizei e que ainda hoje conservo, nos quais aprendi muitas coisas que me ajudaram a gerir a minha vida.
Aos onze anos, completei o ensino primário, com distinção.

Da minha escola, tenho as melhores recordações. Das professoras amigas, dos colegas e amigos que durante muitos anos perdi de vista e que agora, os anos que nos caíram em cima nos trazem constantemente à memória; Dos jogos e brincadeiras e especialmente de certas cenas que hoje mais parecem um sonho.
Também recordo aquele pedacinho de lápis de ardósia que, quando novo e inteiro, com os seus cerca de 10 centímetros, havia custado $10 (dez centavos), mas que era preciso aproveitar enquanto escrevesse.
Por fim, quando já não se conseguia pegar bem com os dedos, metia-se num pequeno e fino canudo de cana, de preferência de bambu ou até de hortênsia.

Não podendo continuar os estudos, como era meu desejo, o que era quase impossível naqueles tempos para uma família de fracos recursos financeiros numa freguesia rural da Ilha do Pico, lá continuei a trabalhar nos campos junto com meu pai e irmãos.

Nesta altura já possuíamos terrenos por todos os cantos da freguesia. Não faltavam terras de pão, de vinhas, de pastagem, de lenha para queimar e monda para os estrumes dos campos, etc.

A Pedreira

Meu pai era também proprietário conjuntamente com o primo José Francisco Serpa, mais conhecido por José Pinto, duma pedreira de pedra mole, com que se construíam os fornos para secar os milhos, cozer o bolo e o pão de milho, etc. e também as respectivas chaminés, para a extracção dos fumos do forno e da lareira, pois não se fabricavam ainda os actuais blocos de cimento, por falta deste. As chaminés, naquela altura, eram um luxo.

Parece-me estar a ouvir o eco do meu pai, com a força que fazia, sempre que dava uma picada na pedra que trabalhava, com o seu afiado picão – ferramentas com que se trabalhava a pedra. Era ele a aparelhar a pedra, e companheiro José Pinto a acarretá-la às costas, para o caminho ou carregadouro. Mais tarde, este serviço era feito pelos filhos.

Do carregadouro era novamente carregada nos carros puxados por bois, do Geraldo Costa, Aníbal Rosa, e João do Adro, para seguir para os mais variados destinos da ilha e até para a ilha do Faial.

À tarde, depois do trabalho, de vez em quando era também preciso ir pôr os picões – as ferramentas - na tenda do ferreiro, geralmente na tenda do Cambóio ali ao lado da nossa vinha do Jacinto, ou quando estes não podiam, na tenda do Bento de Oliveira, nos Bagaços, na freguesia vizinha de São Mateus, para reconstruir.

A tenda do Cambóio era também um lugar onde gostávamos de ir especialmente em dias dInvernoChegávamo-nos para perto da forja e ou bigorna e sabia tão bem aquele calorzinho.
Às vezes para compensar aquele conforto, puxávamos o pau do fole, enquanto o ferreiro batia com grande malho o ferro quente e vermelho sobre a assafra, procurando dar forma à próxima ferramenta.
Quando o sr. João Cambóio estava bem-disposto, lá lhe pedíamos com jeitinho para nos fazer uma faquinha de
ferro que se encabava num pedaço de pau e que dava sempre muito jeito, substituindo a navalha.

Esta pedreira era um exclusivo nosso na ilha do Pico, e como atrás ficou dito, até se vendia pedra desta também para a Ilha do Faial.
Era transportada nos barcos de boca aberta, normalmente no São Caetano e na lancha das Lajes do Pico “Hermínia” que saía em carreira normal da Vila das Lajes para a Horta e vice-versa, duas vezes por semana, escalando o porto da vizinha freguesia de São Mateus.

Lancha/Motor Hermínia

Nesta especialidade, ganhou-se bom dinheirinho, relativamente a outras actividades, por exemplo: um litro de vinho vendia-se normalmente por 1$00, um litro de leite 1$00, um pão 1$10, uma carteira com 24 cigarros triunfo 1$10, enquanto se vendia a pedra para um forno e uma chaminé por 260$00 (duzentos e sessenta escudos)
Era ainda um serviço de aproveitamento dos tempos perdidos com a chuva ou mau tempo, pois era um serviço que se podia fazer com essas situações, para mal dos meus pecados e dos meus irmãos mais velhos, que ao contrário dos outros rapazes que jogavam à bola, ao pião, à pata, às cartas, ao sete e meio, ao macaco na taberna do tio António Medeiros, etc., era na pedreira o nosso lazer”. Havia trabalho para todos os dias e para todo o ano, à excepção dos Domingos e dias Santos, e, quando escasseava um pouco, lá iam os meus irmãos mais velhos Mário e Celestino trabalhar uns tempos na abertura e alargamento de estradas que se executavam naquele tempo na ilha, sempre era mais aquele dinheirinho que entrava no cofre geral e único que sempre existiu lá em casa.

Moeda oficial em Portugal até 31.12.2001

Com a entrada de Portugal na moeda única Europeia em 1 de Janeiro de 2002, passamos então a ter como moeda corrente em Portugal, o EURO.

Oficina de Relojoaria de São Caetano

A oficina de relojoaria de São Caetano cuja clientela vinha dos mais variados pontos da Ilha do Pico era propriedade do meu amigo Manuel Goulart de Melo, reconhecido por todos como muito bom profissional e honesto.

                             A Tenda do Sapateiro

A tenda de sapateiro que conheci em São Caetano era do simpático velhinho, “mestre Manuel Gravito”. Era na sua sala de fora que tinha montada a tenda e que recebia os seus clientes.

Na mesma sala funcionava também uma barbearia, pertencente ao genro Manuel Nunes da Silva.

A Barbearia

Os dias de ócio

Era nos Domingos e dias Santos que se descansava, depois de tratar dos animais, vacas, cabras, etc., salvo na época das vindimas que até nesses dias se vindimava, pois havia sempre o receio que pudesse chover e estragar as uvas.

Os mais velhos juntavam-se no lugar da empena da cooperativa, em cima do alto. Sentavam-se numa bancada de pedra que ali existia e outros no balcão do “tio” José Leal, conforme os ventos sopravam. Uns conversavam, outros escutavam cortando pauzinhos com a sua afiada navalha, enquanto outros picavam (cortavam) o tabaco para fazer o seu cigarro com o tal tabaco da horta.

Havia também os que só tinham vontade de fumar e, para não dar muito nas vistas, pediam uma coisa a um, outra a outro, até completar o cigarro.

Era comentado, com certa graça, um caso dum indivíduo bem conhecido cá na freguesia que picava o seu tabaco
quando o tinha e pedia ao amigo do lado um papel para o embrulhar; Logo de seguida, voltava: dá-me mais um papel que eu piquei tabaco demais”. Sempre aproveitava mais aquele papelinho.
Um livro de papel da marca “Touro” tinha 100 folhas e custava $80 (oitenta centavos).

Os rapazes jogavam ao peão, à pata, à barra, etc. e ao sete e meio a cigarros, etc.

                                      Serviço Militar

Não vendo outra saída, ao aproximarem-se os dezoito anos, resolvi alistar-me como voluntário no Exército.

Era na altura, a única alternativa à vista e uma forma de ganhar tempo, pois por aqui, estava visto que pouco ou nada mais havia a fazer, relativamente às minhas aspirações.

Recordo-me como que se fosse hoje, que o primeiro passo a dar para o efeito era adquirir um certificado do registo criminal, que no tempo era requerido na Secretaria Judicial do Tribunal da Comarca, em São Roque do Pico, a cerca de quarenta quilómetros de São Caetano. Como o dinheiro não abundava e para facilitar as coisas, foram então palmilhados quase todos a pé, descontados cerca de 10 quilómetros da Madalena a Santa Luzia numa boleia na caixa da camioneta do José Filipe que acabava de descarregar lenha no cais da Madalena.

No regresso, já ao anoitecer, apanhei também boleia até à Madalena que me foi dada pelo Leonardo Neves. Aí dormi na pensão do Ruivo, onde paguei 5$00. No dia seguinte, madrugada cedo, rumei a casa a pé, num dia de muito Inverno do mês Janeiro de 1959, palmilhando mais cerca de 18 Km. Quando não via ninguém na estrada, dava a minha carreirinha.
No dia um do mês de Abril de 1959, fui notificado pelo telefone, de que teria que me apresentar no dia seguinte, na Bateria Independente de Defesa de Costa N.º 1 na Horta, a fim de me submeter a inspecção médica e eventual incorporação.
Assim aconteceu. No dia seguinte na camioneta das sete e um quarto da manhã, despedi-me da família, e, de lágrima no olho, lá fui à vida, com 200 escudos na algibeira, e uma mala de madeira dum pau de castanho oferecido pelo meu Tio Manuel Pinto e feita pelo carpinteiro Amílcar Nunes da Silva, com muito espaço no seu interior.

Fui incorporado no dia 3 de Abril de 1959 com o n.º. 3/59 na B.I.D.C.1 da Horta, onde iniciei a instrução a 5 do mesmo mês.

Em Maio seguinte, fui seleccionado para prestar provas para o apuramento de dois recrutas a enviar à especialização de Operador Cripto do Exército, tendo sido seleccionado.
Embarquei no navio Ponta Delgada, rumo ao Batalhão Independente de Infantaria N.º 18 – Arrifes – São Miguel, onde funcionou a primeira parte da especialidade – Centro de Mensagens – simultaneamente com a recruta, e posteriormente as aulas de Cabos, onde obtive bom aproveitamento.

Em Setembro do mesmo ano de 1959, após juramento de bandeira e escola de cabos, embarquei no navio Funchal para Lisboa, rumo ao Regimento de Engenharia Nº. 2 no Porto, onde frequentei a segunda parte da especialidade: Serviço de Cifra do Exército, tendo regressado à B.I.D.C. Nº.1 na Horta, no velho LIMA levando onze dias e doze noites de viagem entre Lisboa e Horta, no final de Novembro do mesmo ano, com uma viagem terrível.
Convém lembrar que sempre com os tais 200 escudos para os gastos.

Ainda em viagem, fui promovido a 1º. Cabo, com direito a receber um pré mensal de 90 escudos, com que me governei durante todo o tempo que andei na tropa.
Aqui, “já com alguma estabilidade económica”, comecei a preparar-me para concorrer a Furriel do Quadro Permanente.
No ano seguinte, 1960, fui monitorizar uma nova Escola de recrutas da especialidade, no B.I.I.Nº.18 – Arrifes – S. Miguel, uma das condições exigidas para o acesso ao posto imediato.
Depois de reunidas as condições para concorrer a Furriel, aguardava-se a abertura dum próximo concurso.

Guarda-fiscal

Era necessário concorrer a todas as hipóteses. Em final de 1961 concorri também à incorporação na ex-Guarda Fiscal.

Em Janeiro de 1962 fui notificado que tinha sido aprovado nas provas prestadas para tal e que oportunamente seria chamado para alistamento e instrução.
Tendo sido a primeira hipótese das que havia previsto, de seguida, saí do serviço militar, para ingressar na ex-Guarda-Fiscal a 27 de Agosto de 1962 no centro de instrução que funcionou na Companhia nº. 1 em Alcântara-mar – Lisboa. Terminada a formação, fui colocado na Companhia Nº. 4 da Horta.

Na Horta e fazendo parte do serviço profissional que desempenhava, embarcava amiudadas vezes em navios nacionais e estrangeiros, dentro e fora da doca, uns em serviço normal de cargas e descargas, outros, estrangeiros, a abastecerem-se de viveres e outros a desembarcar doentes.

Nestas situações dos estrangeiros, era imprescindível a visita do inspector de saúde e a presença permanente da Polícia Marítima – ao tempo Cabo-de-Mar – e duas praças da ex-Guarda-Fiscal.

Algumas vezes com o mar agitado e o navio atravessado, ficava pendurado na escada de quebra-costas a bater contra o costado do navio. Passavam-se noites sem dormir ou a dormir mal. Mesmo assim estas coisas deixaram boas recordações.

Recordo também com saudade o mestre da lancha da Bensaúde que normalmente fazia o transporte entre o cais e os navios, o mestre José Chicharinho, bem como do amigo Cabo-de-Mar João Vítor, homem bom, que todos gostavam de ter como companheiro de serviço no seu dia de escala a bordo. Com ele aprendi muitas coisas relativas àquela profissão que me ajudaram muito.

  Cabo-de-Mar

Junho de 1964

Tendo sempre presente o sentido de melhorar o meu futuro, depois de bem informado, resolvi preparar-me bem para um próximo concurso que só abriria quando houvesse nova vaga a preencher, na área da Capitania do Porto da Horta. Eu queria estar preparado no dia dum possível e futuro concurso. Felizmente estava.
Entretanto, é transferido para Lisboa o Cabo-de-Mar da Ilha do Corvo, da área da Capitania do Porto da Horta.

As provas ocorreram no mês de Março (durante toda a semana santa) do ano de 1964 na Capitania do Porto da Horta, sendo presidente do Júri o sr. Primeiro-tenente Rui Manuel Cordeiro de Castro, então Capitão do Porto da Horta, pessoa que, dado o seu procedimento, tenho a certeza de ser séria e honesta a quem presto aqui a minha homenagem.

Felizmente fui eu o contemplado. Na época, era um excelente emprego, pelo que deu que falar no burgo durante algum tempo, gerando alguma discussão, dada a quantidade (17) e qualidade de alguns dos candidatos.

Na altura, encontrava-se a prestar serviço na Vila da Calheta de São Jorge, o Cabo-de-Mar Óscar José Nunes, natural da Ilha do Corvo que, logo que soube da minha colocação naquela Ilha, entrou em contacto comigo, convidando-me a fazer uma permuta de lugar que aceitei.

                                         A minha Calheta – 10 de Agosto de 1964
 
No dia 10 de Agosto de 1964, viajando no saudoso iate Santo Amaro de boa memória, desembarquei, cerca das 12,00 horas, no porto da Vila da Calheta da Ilha de São Jorge onde trabalhei, constituí família e residi durante 15 anos.

Havia casado a 20 de Junho anterior, mas por força das circunstâncias, nomeadamente dificuldade em encontrar casa na Calheta, tive de avançar sozinho.

Havia que encontrar pousada o que por ali, na altura, era difícil. Por disponibilidade do falecido amigo Manuel da Natividade Pires Teixeira, mais conhecido pelo Cabo Teixeira, então comandante do posto fiscal da Calheta fui dormir numa arrecadação daquele posto, até 13 de Setembro seguinte, altura em que me foi disponibilizada a casa que servia de copeira por altura dos festejos do Divino Espírito Santo, frente à Câmara Municipal, por deferência do saudoso amigo Sr. Tristão da Cunha, presidente daquela Irmandade.

Note-se que havia imensa dificuldade em encontrar uma casa vazia para alugar. Esta tinha apenas quatro paredes, uma porta e duas janelas, tecto, luz e muitos ratinhos.
Foi novamente o amigo Sr. Tristão da Cunha que me emprestara um talhão em barro para depósito de água e o amigo e vizinho Domingos Cunha de boa memória, que me ofereceu a água que o velho amigo João Casaca todos os dias lá ia pôr, com a melhor boa vontade.

Aí habitei em precárias condições até 7 de Dezembro do mesmo ano, altura em que nos instalámos mais comodamente numa casa que aluguei na Rua Padre Matos mas, apenas pelo prazo de pouco mais de um ano, pelo que era necessário encontrar ainda com alguma urgência, outra alternativa. Assim aconteceu. Passado pouco tempo, comprei uma na mesma rua que habitei até regressar à Horta.

Filho és e pai serás, como vires assim farás

Dos muitos conselhos que meu pai nos dava, há alguns que estiveram sempre presentes:

A nossa principal preocupação deverá assentar na seriedade. Quem é sério tem crédito; Quem tem crédito tem dinheiro e, por conseguinte, quase tudo o que precisa e dizia ainda:

- O primeiro negócio do mundo é poupar;
- Ninguém ganha coisa que não possa gastar;
- No poupar é que está o ganho;
- Quem come e guarda, duas vezes põe na mesa;
- Quem compra herda-se; Quem vende deserda-se;
- Compra a quem herdou e não a quem comprou, etc.

Durante os primeiros 5 anos da minha vida profissional na Calheta, não gozei os 30 dias de férias anuais a que tinha direito, pois se o tivesse feito, teria sido substituído por um colega, que teria recebido por direito próprio, os emolumentos dos quais eu não podia prescindir, para que pudesse cumprir os objectivos a que me tinha proposto, nomeadamente a compra de casa e que representavam grande percentagem do meu vencimento mensal.

Com consentimento do superior hierárquico, lá dava de volta e meia um salto num fim-de-semana às ilhas do Pico e do Faial ver os pais, sogros e restante família.

Entretanto, nos meus tempos livres, frequentei um curso por correspondência de Rádio, Electrónica, Televisão e Transístores, na Rádio Escola de Álvaro Torrão, em Lisboa, durante três anos, com bom aproveitamento.

Posteriormente, fiz muitas reparações em equipamentos, onde ganhei algum dinheiro, servindo também muitas pessoas da Ilha, onde deixei muitos amigos.

A Ilha de São Jorge

A Ilha de São Jorge, onde amadureci e criei os meus filhos, é para mim, uma das mais lindas ilhas dos Açores.

Pessoas boas e espirituosas, bonitas pastagens, lindo e bem seleccionado gado bovino, com as suas cooperativas em todas as freguesias, onde se fabrica o famoso queijo de São Jorge, lindas Fajãs, quintas, etc.

Fajãs de São Jorge

São lindas as Fajãs à beira mar plantadas, onde muitas pessoas têm as suas adegas e casas para passar o Inverno, trabalhar as vinhas, cultivar as suas batatas e ainda, invernar o gado.
                
                                     Fajã dos Vimes

É na Fajã dos Vimes que se encontram as tecedeiras que nos velhos engenhos – OS TEARES – fabricavam artesanalmente as mais bonitas colchas de lã virgem de ovelhas nascidas e criadas nas rochas da ilha.

A Ilha é muito alta, por cujas rochas escorrem, aqui e ali, os chamados rios de água. Nestes rios, são cultivados os finos e saborosos inhames que chegam a pesar cerca de uma arroba cada (quinze quilos).

Nos Açores, é na Ilha de São Jorge que se reproduzem as melhores e mais saborosas amêijoas que jamais provei, na Fajã da Caldeira de Santo Cristo, voltada a Norte.

Lagoa e Caldeira de Santo Cristo

Encontrava-se na área da minha jurisdição, aonde me desloquei por várias vezes durante os cerca de 15 anos em que exerci a profissão de Cabo-de-Mar naquela Ilha, e onde fiz e deixei muitos amigos.
Recordo com muita saudade, uma visita em serviço que fiz conjuntamente com o meu amigo Tibério Matos, chefe do Posto policial da Calheta, ele também em serviço, à Caldeira de Santo Cristo.

Descemos a pé as inclinadas pastagens da Ribeira dos Vimes a corta mato, rumo à Caldeira. Chegamos lá por volta do meio-dia esfalfados e com o estômago a dar horas.

Fomos então até à taberna do nosso amigo MIGUEL, o homem da mercearia, do telefone, etc., e, fomos directamente ao assunto: Miguel, vai haver alguma coisa para se comer? O nosso amigo Miguel que era boa pessoa, serviçal e tudo, vendo-se na presença das autoridades máximas do concelho, não perde tempo; Açudado, telefona à esposa, pedindo-lhe que fritasse um prato de linguiça, e, num curto espaço de tempo, estava-mos a bom comer linguiça com pão de milho ainda quentinho.

O Miguel, sem nos perguntar nada, vai à prateleira, e, preparava-se para abrir uma garrafa de champanhe. Começámos a gritar para não abrir que preferíamos vinho, mas o Miguel não nos deu ouvidos. Estava destinado. Contrariamente à nossa vontade, fez questão que bebêssemos mesmo champanhe a acompanhar a linguiça com pão de milho.

No fim, apesar da nossa insistência, não nos deixou pagar, e ficou todo feliz. Santos tempos

Fajã dos Cubres


São Jorge é uma Ilha, onde eu notava marcas de ter havido alguma burguesia e algumas fortunas, muitas delas vindas do Brasil.
Contavam-me os amigos mais antigos que certa fortuna, mais propriamente do Gasparinho da Freguesia da Ribeira Seca, descarregada dum navio que escalou a Calheta, foi transportada em carro de bois, cheio de sacos com dinheiro em prata. Consta que era tanto que algumas moedas que caíam dos sacos nem eram juntas.

Ainda hoje se vêm grandes casas apalaçadas, algumas com capela onde viveram famílias nobres, Viscondes e
Viscondessas, entradas e portões de grandes casas e quintas em pedra lavrada, com os respectivos brasões, etc.
Desta ilha saíram grandes figuras, homens de letras, capitães de navios e veleiros de longo curso, Bispos e músicos, como o famoso Maestro Francisco de Lacerda.

Viam-se nas sociedades recreativas fotografias de senhores de grandes e bem tratados bigodes e colarinho alto, deixando transparecer muita personalidade.

Os mais espirituosos brincavam, pregando partidas uns aos outros.
Normalmente as pessoas que vinham das freguesias mais distantes e das fajãs à procura de certas coisas que por lá não encontravam, por vezes eram as vítimas. Eram remetidas aos mais diversos lugares, e, era-lhes recomendado: Olhe: ele (…) vai dizer que não tem. Ele em princípio diz sempre isso, mas, aperte com ele, que ele tem, e vai servi-lo.

Ora, quando o visitado percebia da marosca, muitas vezes, dava ao cavaco e, por vezes, tratava mal a pessoa: vá lá dizer a quem o mandou aqui, que vá p’rá …

Outras vezes, vingança a quente, aproveitavam para, em jeito de ricochete, pagar com a mesma moeda.

O meu amigo Fernando Pereira (Guarda-Fiscal), era desses tais velhacos que entrava com todos. Certo dia entra com alguém da sua têmpera que lhe atirou das boas. Este, apanhado um pouco de surpresa, muito fitado nele, responde-lhe: “Não há dúvida que o número dos tolos é infinito”

Certo dia de passagem de iate de passageiros e carga, vindo da Ilha Graciosa, foi descarregada sobre o cais da Calheta uma albarda para burro anão.
O (Guarda) Alfredo Braga, foi buscar um saco, meteu-a dentro do mesmo e mandou o velho João Casaca levá-la a casa do colega Fernando Pereira que ficava ali perto. 
Este ao abrir o saco, furioso, insultou o pobre do João Casaca e disse-lhe: ó seu animal então não vês que isto era para casa dele, tu é que te enganaste? Lá foi o pobre do João pôr a albarda em casa do Braga ali na Rua da Ladeira. Este, quando foi almoçar, lá tinha a dita.

Contavam-me os meus amigos mais velhos muitas histórias passadas com estes e com aqueles, pessoas bem conhecidas de alguns deles. Algumas que não se podem lembrar aqui.
Consta que o Capitão Goulart, natural da Calheta e Capitão dum navio veleiro que fazia viagens entre Lisboa e a costa Leste dos Estados Unidos da América do Norte, juntamente com alguns amigos, depois de bem jantados e bem bebidos, na adega do senhor Borba, na altura tesoureiro da Fazenda Pública da Calheta, pessoa muito considerada especialmente na Vila, voltou-se para este e, ao despedir-se, pergunta-lhe: Ó Borba! Que é que queres que te traga da América? O senhor Borba na brincadeira, responde-lhe: Traz-me uma “rapariga”.
Tempos depois, o sr. Borba era acordado cerca das 3 horas da manhã com uns toques na janela do seu quarto.
Todo espantado, pensa: Quem diabo me vem acordar a estas horas? Pé ante pé, vai à janela e encara com o Capitão Goulart acompanhado duma senhora e diz-lhe: Está aqui a tua encomenda.

O sr. Borba receando que a esposa acordasse, nem teve tempo para pensar ou dizer nada, fez-lhe sinal que abalasse, vestiu-se rapidamente e lá teve que ir arrumar a encomenda.
Virado para o Capitão Goulart, diz-lhe: Não há dúvida que és doido. E agora? Resposta: promessas são dívidas, está aí. É a tua encomenda.
Lá teve o sr. Borba que ir “arrumar” a senhora na sua adega da Fajã Grande onde se manteve isolada até ao regresso do navio de Lisboa para os Estados Unidos, cerca de um mês depois. Peripécia destas havia muitas naquele tempo, naquela Ilha.
Em São Jorge, não só fiz muitos amigos, como vivi dos melhores anos da minha vida.  
Quero aqui lembrar um pensamento que sempre me norteou: A seguir à família, estão os verdadeiros amigos. Entendo que no fim da vida, o que conta é o bem, o mal e os amigos que fizemos. 
Como eu era natural da Ilha do Pico, às vezes, os amigos por graça diziam-me: Com gente do Pico, nem por carta nem por escrito.

Quando chovia, diziam muito seriamente: “há-de-se fazer como os do Pico”. Eu farto de ouvir aquela conversa, um dia perguntei: Como é que fazem os do Pico quando chove? Deixam chover.

Contavam-me os amigos que, nos tais tempos mais difíceis, iam pescadores daqui, da ponta da ilha do Pico, Calheta, Manhenha, Calhau, etc., pescar aos bonitos para São Jorge.

Enquanto uns pescavam, outros em terra, escalavam, isto é: salgavam e secavam o peixe ao sol, e, depois iam pelas freguesias com cestos de vimes às costas, cheios de bonitos – mais conhecidos no Pico por cachorras - pendurados num pau.

Certa vez o homem do Pico, ao passar junto a uma casa a apregoar: olha as cachorras, quem quer comprar cachorras? Vê uma senhora já de idade, no quintal, e pergunta-lhe: Ó senhora: Quer comprar cachorras?
Diz ela: não senhor. Não quero cães à minha porta. Ele vendo que ela tinha percebido Cachorros, insiste:
Ó senhora: são bonitos. Resposta: Nem bonitos nem feios. Já lhe disse: que não quero cães à minha porta.

A minha passagem pela Ilha de São Jorge, marcou profundamente a minha vida e a da minha família gravando-se-nos nas nossas almas muitas e boas recordações.

        
O 25 de Abril de 1974

Até aqui, tudo corria normalmente, apesar do marasmo da ditadura. Ganhava-se pouco, mas não havia muita confusão.

Com o Golpe de Estado levado a cabo pelas Forças Armadas Portuguesas, nomeadamente pelos denominados capitães de Abril, em 1974, nada ficaria como dantes. Eram as minhas previsões e assim de facto aconteceu.

No verão de 1978, por altura das férias, o meu saudoso irmão Manuel Marques, então emigrado em França, convidou-me a fazer uma sociedade comercial o que aceitei.

Havia que preparar o futuro dos meus filhos, o que e, na Ilha de São Jorge, não se vislumbravam muitas hipóteses.

Em 21 de Dezembro de 1978, constituímos a sociedade por quotas MARQUES & SILVA, LDA., cuja actividade se iniciou em 1 de Janeiro de 1979.

Por motivos de reorganização da minha vida particular e do futuro dos meus filhos, deixei então a Vila da Calheta em Março de 1979, depois de lá ter vivido cerca de 15 bons anos.
                                   
Fui fixar residência na cidade da Horta, na Ilha do Faial, onde me instalei como industrial e comerciante, tinha então 39 anos.

A nossa empresa marchava bem, mas a pouca sorte do meu querido irmão e sócio Manuel Marques, vitimou-o num acidente de viação em 7 de Agosto de 1982.

Como a viúva daquele era francesa e resolveu regressar definitivamente à sua terra, adquiri a sua quota e passei a gerir sozinho esta pequena empresa que, no ano de 2011, continua activa. Vivem-se tempos difíceis. O futuro a Deus pertence, mas, como de costume, há que ter esperança e confiança no futuro.

O OUTONO
           
Caem as folhas das árvores. As temperaturas baixam. Assoalham-se as roupas próprias para a estação e para o inverno que se aproxima também. Outonam-se as terras, etc., Há quem diga que os tempos andam mudados, tenho dúvidas. No entanto, o tempo com o tempo se paga.
O Inverno perguntou ao Verão: Vás este ano? Este respondeu: ainda não tenho a certeza. Diz o Inverno: eu vou de certeza. Era o que diziam os antigos que viviam dos campos e do mar, que se regulavam pelos astros, e pelo almanaque “O Seringador”, a “folhinha” como alguns o conheciam. Cresci a ouvir frequentemente os Provérbios ou Adágios Populares que, normalmente batiam certos.
  
“Outubro, bois para o palheiro, barcos para trás do muro”.

Tenho sempre presente o dia 5 de Outubro de 1946, tinha então 5 anos. O dia amanheceu triste. Vento Sul muito forte, chuvas abundantes e trovoada. Não se podia sair à rua. O mar alteroso, fronteiro ao porto de são Caetano, parecia querer engolir a terra.

Eu e os meus irmãos estávamos por dentro duma janela observando aquele fenómeno da natureza, que mais parecia o fim do mundo À beira mar, ao lado do porto, havia uma rua com muitas adegas, nomeadamente: os armazéns da D. Júlia da Ilha do Faial, com os seus alambiques, o açougue do Manuel Vigia, casas de aprestos das embarcações de pesca artesanal e ainda a do barco São Caetano, um barco de boca-aberta que transportava diversas cargas entre o Pico e o Faial, nomeadamente lenha para alimentar a central eléctrica e achas para queimar nos fogões a lenha que se encontrava varado na rampa do varadouro daquele porto.
Vimos então formarem-se enormes ondas, que, à terceira, e em segundos, fizeram desaparecer por completo todo aquele casario que acima referi.

O barco São Caetano com alguma dimensão e peso, não escapou à fúria do mar, que o foi deixar atravessado na ribeira existente ali ao lado.

Barco São Caetano

Era então aquele que ficou conhecido pelo ciclone de 5 de Outubro de 1946, cujas imagens recordo. Os prejuízos foram enormes, como se pode calcular, não só em São Caetano, como noutras paragens por onde o monstro passou.

Assim é o Outono da vida, que também já conheço. Já sinto as folhas a cair. São os ciclos da vida, as regras da natureza.
Quando se chega ao Outono da vida, chegam também as recordações e saudades da primavera, do “ninho” e do verão que se passou quase sem se saber como. Ficamos de certo modo a olhar para trás e a recear o Inverno que se aproxima. No entanto, quando se geram sementes para germinar novas Primaveras, sente-se a agradável sensação de dever cumprido. É então altura de passar o testemunho aos mais novos e preparar para o que aí vem.

Diz o povo que um homem para se sentir realizado, terá que:
·          Fazer um filho;
·          Plantar uma árvore;
·          Escrever um livro.

- Filhos são três: O Vítor o Paulo e a Linda. Netos são sete: O Diogo, Ricardo, Catarina, Rita, Paula, Alexandra e o Rodrigo. Esposa, Albertina Silva. Noras: Florinda e Telma, genro era o saudoso e amigo Marco.

É a esta família, que até ao presente, me tem dado muitas alegrias, que dedico com muito amor e carinho, as muitas horas que passei para compilar aqui, muitas das minhas melhores recordações.

- Árvores, plantei muitas;
- Livro…foi o que se conseguiu, mas…
Mas, quem faz o que pode, a mais não está obrigado.
O destino não permitiu que eu roçasse os bancos do liceu ou universidade, mas sim que roçasse outros, que embora com mais sacrifícios, penso ter conseguido os meus objetivos. Criei muitos postos de trabalho, não só para os meus filhos, mas também para muitos jovens e adultos.

A vida de um pobre, é um problema com muitas contas que, no fim, dão resto zero.

Penso que este meu livro espelha um pouco de tudo o que se passava e que eu vi e vivi na Freguesia de São Caetano, nos anos 40/50 do século XX.

Adágios Populares:

Era minha aspiração, passar a escrito, alguns adágios populares, que muito marcaram a minha vida, desde a infância e adolescência, ouvindo-os no dia-a-dia aos meus pais, avós e a outras pessoas mais velhas. Outros são de minha autoria, dada a experiência que a vida também me ensinou, numa época em que havia pobreza, mas também, alegria de viver, época que de algum modo passou e nada tem a ver com a actual era da fartura, da internet, electrónica e das telecomunicações, que transformou radicalmente o mundo, especialmente nestes últimos anos.

Pretende-se assim tentar passar o testemunho de tão rica cultura popular de séculos de experiência dos nossos antepassados, aos filhos, netos e demais descendentes e a outros que porventura tenham oportunidade de ler ou conhecer estes simples apontamentos, pois em meu entender, tudo leva a crer que grande parte destes adágios, que já não são conhecidos por muitos, se possa perder no todo ou em parte, nas próximas gerações.

São Caetano, 22 de Agosto de 2011


                                                               VERÇO DA CAPA

Neste livro poderá o leitor encontrar simples histórias passadas na década 40/50 do século XX, na Freguesia de São Caetano, também conhecida por Prainha do Sul, Ilha do Pico – Açores.
São coisas simples que espelham a vida daquela época, em relação ao presente; Década 10 do século XXI.
Como cidadão atento, penso que na minha geração, terminou um ciclo “pós idade da pedra”, que as gerações vindouras apenas conhecerão na escrita e museus etnográficos, daí a razão desta minha ousadia de publicar alguns dos aspectos que eu vivi e verifiquei.
Peço aos familiares de algumas das pessoas que aqui cito nomes, que me desculpem, mas a intenção é tão-somente para que muitos deles, meus amigos de infância e ainda alguns mais idosos vivos na Freguesia, possam também confirmar.

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